São Domingos adorando a Crucificação, 1441

por FRA ANGÉLICO (1395-1455)
Convento de São Marco, Florença, Itália. 340 x 206 cm
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Esta obra define o tipo de devoção que terá a ordem dominicana, a qual Fra Angélico pertenceu: não é furor ascético nem êxtase. É uma contemplação meditada de uma fé clara e racional.Também o rigor de uma fé inabalável.
Argan diz em seu livro Clássico Anticlássico que o rosto de São Domingos aqui corresponde à condição da alma: sobrancelhas franzidas, mandíbula cerrada, olhar atento, ao mesmo tempo que os lábios mostram “uma palpitação férvida, uma dilatação das narinas. Um frêmito das mãos que roçam a madeira ensanguentada”. Assim seria o espelho da verdadeira penitência.
Tão diferente do Fra Angélico angelical espiritualizado que conhecemos, com cores pastéis, tênues e aéreas muito presentes na sua obra “Anunciação”. Aquele do mito, que cantava hinos enquanto pintava. Aquele que chorava antes de começar a pintar.
Aqui há uma massa plástica densa, um peso material, uma certeza compacta, uma corporalidade de coisas verdadeiras. Enquanto outras obras de Fra Angélico parecem ter caído do céu, esta aqui parece ter brotado da terra.
Vê-se que Fra Angélico se deixava trespassar pelo tema que ía executar : ora inefável, com louvores aos céus, ora mediando o agudo da luta e sofrimento do mundano.
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                                      “BACON: A BELEZA DA CARNE”


                                               Duas Figuras, 1953

(Texto feito a partir de palestras que podem ser acessadas no site do Masp)
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é uma importante exposição que está ocorrendo no MASP (22-3 /28-7). pois as pinturas de Bacon sao raras, valiosíssimas, e os museus nao gostam muito de emprestá-las, diz Paulo Hekernhoff.
Aqui trata-se das obras de Francis Bacon do período 1947-1988.
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O subtítulo (a beleza da carne) vem de uma fala do artista em entrevista de 1966 qdo Bacon expressa sua admiração pela impactante visão das peças de carnes penduradas em um açougue. Beleza e horror, emergem como dualidade em sua obra bem como sedução e destruição, vida e morte.
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Nos últimos 20 anos surgiram muitas pesquisas interessantes sobre o pintor. O status jurídico da sexualidade mudou e muita coisa nova veio à tona sobre a biografia do autor.
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Principalmente nos últimos10 anos, temos um desvelamento da obra de Bacon com a emergência de assuntos queer, assunto esse, que na sua obra ocupa um lugar central uma vez que era essa a sua identidade com uma forma muito particular de ser. Ele encontrou um fazer profundo dentro dessas estruturas de violências e desigualdades.
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As 23 obras expostas vêm trazer a história queer ignorada na pesquisa de Bacon o que torna a exposição pioneira, isto é, pela primeira vez o assunto é densamente abordado.
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Bacon se estabeleceu no Soho (anos 50) um bairro central de Londres, com becos interconectados, comunidades artísticas, imigrantes do pós-guerra. Lá viviam pessoas de todo o tipo, uma enorme diversidade, inclusive os fora da lei.
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O que é um queer ? (queer= ‘estranho’ pessoas que não se identificam com os padrões impostos pela sociedade e transitam entre gênero sem concordar com os rótulos ou que não sabem definir seu gênero/orientação sexual). A exposição do MASP destaca este aspecto queer e escolhe este pintor que vive esta vida na época em que nem era usada a palavra homossexual, sequer gay era usada.
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Havia muitas mudanças neste pós guerra, o fim do racionamento de guerra, mudanças políticas, sociais, novas ideologias, velhas repressões. O Soho pela sua diversidade era um bairro conhecido como “o que não se podia policiar”. No entanto, a polícia vasculhava tudo em busca de sinais de prática sexual ilícita. A pena era prisão e posterior castração química (ver o caso de Allan Turing, o grande matemático que cometeu suicídio em decorrência dessa situação).
Há números sobre esta perseguição sexual. No ano de 1952 houve 670 processos por sodomia e 3087 casos de atentado ao pudor. A polícia vasculhava buscava até maquilagem e trejeitos em fotografias para encontrar sinais de homossexualidade. Os escândalos e práticas sexuais eram divulgados pela mídia.
Bacon estava profundamente mergulhado nesta época delirante e principalmente dentro da minoria queer.
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Os anos 50 foram de grande agitação e ansiedades. Havia um jeito de maior liberdade sexual para os queer com dinheiro: fugir para Berlim, Monte Carlo, Egito, mas principalmente para Tanger onde a polícia fazia olho grosso para o turismo sexual, drogas e prostituição (que eram lá tb proibidas, mas não fiscalizadas).
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Bacon e outros homens ricos e intelectuais como os escritores William S. Burroughs, Tennessee Williams, Allen Ginsberg, frequentavam cafés, clubes, passeios juntamente com jovens americanos, árabes, marroquinos já que eram homens queer exilados também dentro de seu próprio país e vinham para escapar da repressão.
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Assim se transformavam no “cosmopolita gay”, isto é, alguém do país, fora da lei, que encontra um parceiro no estrangeiro. É assim que Bacon tem um relacionamento com Peter Lacy definido mais tarde por Bacon como “quatro anos de horror contínuo” . O amante destruiu quase toda a sua obra em Tanger, num ataque de raiva.
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É importante este estudo do contexto de Bacon não só em Londres, Soho, mas tb nos vários países que costumava visitar. A maior parte de sua vida Bacon não estava pintando. Estava viajando, amando, vivendo. Temos medo, às vezes de focar nesses detalhes mas são eles que compõem a visão de mundo do artista.
(Texto baseado nas palestras promovidas pelo MASP: Gregory Salter; Dominic Janes; Richard Hurnsey e outros)
DIEGO VELÁZQUEZ (1599-1660). 

Nasce em Sevillha, cidade ao sul da Espanha, sua capital cultural, na época. Lá ficava o grande porto por onde chegavam as novidades do novo mundo, das Américas.

 Diego Velázquez mostrou aptidão para a pintura desde muito cedo. Foi um artista tecnicamente formidável, e na opinião de muitos críticos de arte, insuperável pintor de retratos. Influenciou Pablo Picasso, Salvador Dali e em especial Edouard Manet. 

Foi um dos maiores coloristas de todos os tempos. É no Prado, como deve ser, que ficam localizadas a maior parte de suas telas. (cenas religiosas, pinturas históricas, nus, cenas de interior). 

Sua obra mais famosa é “Las Meninas”(1656) que ocupa uma parede inteira do Museu do Prado. Quando chegamos perto desta obra, é impossível não exclamar uma palavra de admiração. Uma luz incide diretamente sobre a tela e parece que as figuras são em 3d (o resto da sala no escuro). É uma obra de grande complexidade, uma síntese de seu realismo e idealismo. Proporções perfeitas, as cores, a movimentação e hierarquia da cena, qualquer um de nós, leigos, saberemos apreciar.

 Velázquez demonstra grande discernimento psicológico ao retratar a Infanta Margarida Maria, que é o centro da composição, os bufões, ele mesmo autorretratado, o casal real que aparece no espelho. Para quem gosta de curiosidades, uma delas: a obra foi analisada por Lacan no seminário XIII.


 A cena parece inesperada e espontânea apesar da hierarquia calculada do conjunto. Até hoje sonho com um hiper-mega-museu onde cada quadro tem o direito àquela iluminação e a uma sala exclusiva. Não há como não embasbacar.

 Picasso copiou este quadro exaustivamente, fez 58 releituras. Velázquez pinta, para seu gosto pessoal, anões e bufões e tem um poder de caracterização e capacidade de realçar a dignidade dos modelos, em contraste com sua deformidade claramente exposta. 

 Ele é o principal precursor do impressionismo e Edouard Manet vai dialogar intensamente com os seus tons negros de onde emergem vermelhos e azuis, dando-lhe vida e textura. Existem pouco mais de cem obras conhecidas de Velázquez. Como quase nunca assinava suas obras, o artista teve atribuídas a ele, muitas telas de outros pintores. 

O MASP possui o Retrato do Conde-Duque de Olivares (1624) que faz parte de uma série de 4 encomendas (2 de corpo inteiro e 2 meio-corpo). O Masp tem o retrato de corpo inteiro do mais importante homem da Espanha na época, o que detém a chave do reino, manda e desmanda, ficando o Rei uma figura quase decorativa. A solidez do corpo do Duque que está de negro (cor heráldica espanhola) contrasta com sua cabeça pequena em relação ao corpo e isso é proposital para que o quadro seja visto de baixo para cima e mostrar imponência e olhar superior do Duque de Olivares que é para ser venerado quase como um santo.É um grande e valoroso quadro que o Brasil possui deste mestre. Diogo Velázquez, que cercado de prestígio e honrarias morre em Madri a 6 de agosto de 1660.  



          "Las Meninas", Diego Velázquez. Museu do Prado, Madri, 1656

 

FRA ANGÉLICO (1395-1455)



"A Deposição"

Fra Angélico (ou Giovanni da Fiesole, nome que recebeu na ordem dominicana) foi considerado, sobretudo pelos românticos, o protótipo do artista místico, mergulhado na contemplação de inefáveis visões celestiais. E realmente foi homem religioso, erudito, de vida santa e é considerado, entre todos, um dos mais espirituais. O nome “Angélico” foi acrescentado mais tarde. Recebe o apelido meramente honorífico (não foi dado pela igreja).

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Sua pintura é ligada estreitamente com a cultura religiosa de seu tempo, crenças fundadas na tradição do pensamento mais severo.
Mas toda esta base religiosa era vigiada, medida, executada pelas grandes idéias do Renascimento.
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Ele foi um renascentista, reconhecia que havia uma grande revolução em andamento e contribuiu para a realização daquela revolução, mesmo que via tb a necessidade de trazer para a atualidade, as fontes genuínas do pensamento cristão.
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Para ele, “toda a história é uma história religiosa e o fim último continua sendo a salvação da alma” diz Argan no livro "Clássico e Anticlássico", no qual me baseei para escrever este texto.


"A coroação da Virgem"

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Sua pintura possui um sólido fundamento doutrinário, tomista e como São Tomás era o “doctor angelicus” ele foi apelidado “Angélico”.
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A pintura do frade não era só uma pintura mística, longe disso. Era dotada de uma intencionalidade precisa. Ele estava por dentro e em contato com as correntes de artes mais avançadas do séc XV.

"A Anunciação"


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Nossa tendência é ver sua pintura clara, luminosa como uma pintura quase ingênua, uma pintura “santa” feita por um santo. Eu mesma sempre o vi desta forma superficial. Não. Angélico falava um latim polido, era um orador eficaz, de escrita elegante, conhecia os clássicos. Ele usava a perspectiva, sabia colocar as figuras no espaço onde “até as sombras são luminosas” como disse o historiador Ruskin, “até a escuridão máxima é cor”.
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Angélico ilumina tudo para que a harmonia seja alcançada. Para isso, queima todas as coisas frias, as tumescências, a tola sensualidade. Assim é destruído tudo o que é contraste, assim é destruído "o mal". Feito isso, a natureza se desvela a nossos olhos com harmonia e paz a fim de que o intelecto sedento descanse. Sendo assim como negar que a pintura de Fra Angélico não seja antes de tudo pregação? pergunta Argan. Mas não só.
Guido (nome de nascença) nasceu perto de Florença, em Mugello, por volta de 1395. Em 1417-18 entrou para a ordem dos Dominicanos. Já pintava neste momento, antes de se tornar monge. Há quem afirme que trabalhava com iluminuras, é bem possível.
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Em 1432 faz uma Anunciação, em 1433 executa um grande tabernáculo encomendado pelo grande Ghiberti. Em 1438 foi recomendado a Piero de Médici como “um grande mestre” de Florença. Seguem-se as encomendas de porte como pintar retábulos no convento florentino de San Marco, depois a decoração das celas, um altar.
Ele já adquirira grande fama. O papa resolve agraciá-lo com a cátedra de arcebispo a que renuncia por modéstia. Em fins de 1445 (sob o papa Eugênio IV) é chamado à Roma, fato considerado o ápice de qualquer carreira artística da época.
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Lá trabalhou nos palácios do Vaticano e volta em 1450 para Fiesole, se tornando prior do convento de San Domênico. A estas alturas está entre os grandes do Renascimento.
Torna a Roma em 1453 para trabalhar nos afrescos de Minerva e morre lá em 1455.
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O pintor Angélico figurava as coisas de forma a nelas ver Deus. Era demasiado teólogo para pensar que Deus pudesse ser contemplado diretamente, de maneira física. Então exalava Deus através do que pintava. Na natureza que Deus criara, estava a sua essência. Ali “o bem” era escolhido e o mal eliminado. Não é para menos que Angélico é, entre os artistas da primeira metade do séc XV, o que mais explicitamente procura definir um cânone de beleza ideal. Mas não é um teólogo, apenas. Ao mesmo tempo que busca a doutrina, participa da discussão contemporânea da arte.
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O crítico Giulio Carlo Argan diz que Vasari (considerado o primeiro historiador de Arte) é o responsável pela lenda em torno do nome de Fra Angélico. Ele defende que Fra Angélico é um santo, logo toda a sua pintura é santa. Antes de começar a pintar ele rezava e chorava. Entoava hinos enquanto pintava, portanto sua obra seria consequência de um arrebatamento de êxtase religioso, uma revelação. Vimos aqui que sim, mas nem tanto.
Em 1982, Fra Angélico foi beatificado pelo Papa João Paulo II e é considerado o patrono dos artistas.
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 REMBRANDT

 

"A Volta do Filho Pródigo", 1668. Museu Hermitage




luz, sombra, textura e solidão.
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Rembrandt foi o maior pintor do século XVII. Isto é quase um consenso.
Enquanto seus contemporâneos faziam pequenos quadros de paisagem, cenas alegres, humor malicioso, ele estava imerso no drama e mistério da condição humana.
É o pintor da nossa desolada solidão. Suas figuras têm inscritas nas rugas, nas expressões sutis, uma idade psicológica de sabedoria.
Todos são velhos, todos são patriarcas bíblicos.
Todos são extraídos da penumbra, como se uma luz se acendesse por dentro de cada um.
Diferente de Caravaggio que "usa um holofote" para iluminar o drama, Rembrandt extrai lentamente cada figura do espaço profundo "como se os átomos soltos no escuro viessem pousar na tela e formar uma figura" diz Argan, historiador de Arte .É uma condensação.
Rembrandt supera a interpretação psicológica das personagens, vai além. Diz-se que sempre pinta a si mesmo. Identifica-se a tal ponto com a pessoa que retrata, que no final, todos parecem ser ele mesmo. Mas sobretudo pinta a salvação e a perdição que é própria da vida.
Tive a grande graça de ver "O retorno do filho pródigo" no Hermitage. É daquelas obras que impõe silêncio dos que estão em volta. Arrebata, basta ficar em frente e se entregar. Tipo...baixa um clima de sensibilidade coletiva. Todos tocados pelo drama. O espaço em frente ao quadro é espaço que nos une em santidade. Mas uma santidade humana, beatitude, emoção.
Esta é considerada a maior preciosidade do museu. Isso que lá não falta inclusive Leonardo da Vinci.
Nesta pungente obra, o pai que recebe o filho é uma muda presença humana que aceita as circunstâncias como a um desígnio inescapável.
Sem notar, e de repente, aquela narrativa bíblica se faz atual. A todo o momento há um filho pródigo que volta, há um pai comovido que aceita. Então isto que vemos adquire a força da verdade, uma concretude atual.
Ele tem a capacidade de nos agregar à obra e então movemo-nos dentro e com a obra. Nesta fusão, um fato do passado (bíblico) torna-se um fato presente e sabemos que tudo se repete o tempo todo: um Cristo é crucificado todo o dia, uma Salomé oferece a cabeça de João, um pai oferece o filho em sacrifício. Tudo é um retorno.
Muito dessa fusão, dessa palpitação, se deve à técnica de Rembrandt. É como se a cor estivesse pulverizada e ainda não decantou na tela. É uma composição por partículas que estão ainda no ar e não se compôs. Cada nota de cor carrega o pressentimento da próxima, da sucessiva. Rembrandt embala as figuras em luz atmosférica, criando uma unidade. Sua luz não vem de fora, vem de dentro, do invisível, do secreto.
E isto ecoa nos planos distantes. Ele desenha com o pincel. A cor é dourada. As figuras que estão em cena, cada uma está isolada em si, solitária assim como é a condição humana.
Rembrandt não interfere, não questiona, não emite juízo. Suas figuras não agem mas "sofrem a ação" da luz, da sombra, da vida.