Alphonse Maria Mucha-(Morávia1860- Praga 1939)

Foto tirada diretamente do filme na exposição Epopéia Eslava

Mucha (pronuncia-se Muk-ra) é mais conhecido pelos seus cartazes, ilustrações, figurinos, cenários de teatro, vitrais, trabalhos publicitários diversos (rótulos, selos, dinheiro, tecidos, papel de parede, etc) do que como pintor. Acima de tudo ele é tido como o expoente do Art Nouveau. Seu nome e o Art Nouveau se confundem.Sua obra, apesar de ter sido algo esquecida na presença das vanguardas, a partir dos anos 60 retorna em ondas de sucesso. 


Conta-se que ele estava numa gráfica, em Paris, quando surgiu um pedido urgente para cartaz do novo espetáculo da maior atriz francesa do momento: Sarah Bernhardt (obra "Gismonda" de Victorien Sardou). Ele se apresenta para fazê-lo e isto passa a ser o começo de uma série de seis anos de contrato e de uma amizade que lhe dará prestígio. Era naquela altura um estudante da Academia de Belas Artes, estudo pago por um conde, para quem havia decorado o castelo. A sorte ajudando o talento.


Todos reconhecemos sua obra publicitária com traços bem delineados, muitos detalhes e estampas coloridas, com mulheres lânguidas, roupas esvoaçantes e quase sempre cercadas de flores e adornos. Tudo parecendo vitrais. Mucha foi enorme sucesso. Ele abrangeu tudo: de roupas, decoração e  arquitetura.
Mas não quero me deter só nisso (como se "isso" fosse pouco...).

Epopéia Eslava.Foto: Angela Becker
É que existe uma obra maior: a “Slovanska Epopej” ou Epopéia Eslava. Ao adentrar o Grande Salão do Palácio Veletrzní, em Praga, impossível não se emocionar, já de cara. 20 painéis imensos contam a história e a mitologia eslava. Imensos, quero dizer  8 metros por 6, cada um! Na exposição mesmo, vi um vídeo demonstrando a técnica usada para a montagem dos painéis. É alguma coisa de inacreditável. Perde-se a noção, as proporções. Não sabemos lidar com algo tão descomunal, não há espaço para o afastamento necessário, tonteamos, literalmente.

 Mucha trabalha por 18 anos nestes painéis, mas não sem antes pesquisar, viajar para vários países (Rússia, Balcãs, Polônia)  e conhecer detidamente o assunto.
Em 1928 é apresentada pela primeira vez. Depois é armazenada em um depósito e num palácio. Após 84 anos, a obra volta a Praga, cidade para a qual foi doada, desde que se construísse um edifício especialmente para ela. Ainda não há o tal edifício de modo que, por dois anos, vai ficar no Grande Salão, na cidade de Praga.

Na Segunda Guerra Mundial, sua obra é confiscada pelas forças alemãs. Ele é interrogado pela Gestapo e, fragilizado, sucumbe por uma pneumonia. Morre desapontado pelo desafortunado destino de seus murais.
 Depois de muito tempo de esquecimento, Praga inaugura um museu de Mucha, organizado por seu filho Jiri (www.mucha.cz/).

Angela Weingärtner Becker


Gauguin  (Paris, 1848 – Ilhas Marquesas, 1903)


“Vou para o Taiti onde as necessidades materiais da vida podem ser satisfeitas sem dinheiro...Quando na Europa homens e mulheres só sobrevivem depois de um trabalho crescente durante o qual se debatem em convulsões de frio e fome, presas da miséria, os taitianos, ao contrário, felizes habitantes do Paraiso desconhecido da Oceania, só conhecem a doçura da vida”.

 Assim diz, assim faz Eugène-Henri-Paul Gauguin depois de abandonar a esposa dinamarquesa com cinco filhos pequenos.
Este é mais um daqueles artistas marcados para sofrer. Como van Gogh, como Modigliani, comoToulouse-Lautrec.

Gauguin nasce em Paris e em seguida sua família atravessa o Atlântico rumo a Lima, Peru. Nessa viagem, morre seu pai. Assim, o futuro pintor desembarca apenas com sua mãe e irmã. Volta a Paris com 7 anos e é adotado pelo tio. Com 17, ingressa na marinha mercante e corre o mundo. Tenta trabalhar na abertura do canal do Panamá. Sangra as mãos e foge para a ilha Martinica. Volta a Paris e vai trabalhar  na bolsa de valores. Em1873 casa com Mette Sophie Gad.

 Aos 35 anos, após a quebra da Bolsa de Paris, toma a decisão de dedicar-se totalmente à pintura.Mergulha na vida errante e promíscua de Paris. Joga fora tudo o que juntou. Num leilão, desfaz-se de sua coleção de obras impressionistas. Passa problemas econômicos. Vai então para Copenhagen, casa do sogro, onde acaba ocorrendo o rompimento de seu casamento.


Paris é devassidão. Deseja um lugar incivilizado, puro, primitivo. Vai para o interior, a Bretanha, que parece viver na idade média e ainda tem mitos, valores simbólicos e morais. Lá há uma igreja com um cristo pintado de amarelo. As mulheres se vestem como freiras. Ele não quer mais a modernidade. O espírito do romantismo mora nele: o artista é aquele que é contra tudo e todos. Ser artista é ter solidão, abandono, é ser underground. É ter uma missão. Na Bretanha encontra van Gogh que lhe pintara 11 quadros de girassóis para decorar o quarto do amigo esperado. Numa acalorada discussão, corta uma orelha.


Gauguin vai para o Taiti. Havia combinado com seu amigo Émile Bernard com quem tinha muita afinidade artística que iriam para um mundo fértil, incontaminado, um mundo que ainda tinha a pureza que a velha Europa já não podia mais oferecer.Seu amigo falta no último minuto. Ele vai sozinho.


Gauguin encontra o paraíso no Taiti, entre o povo maori.O mundo mítico que esperava:os nativos escrevem a história em seus corpos tatuados. Gauguin pinta com cores intensas, sem ponto de fuga. A perspectiva é dada pelas cores.O olho quer a perspectiva, mas Gauguin nos dá cores, em troca. Longas e planas manchas de cores. Mundo tropical, a manga, é símbolo que substitui a maçã bíblica. Máscaras polinésicas. Deusas e deuses do Taiti.
Mas ninguém se despe de sua cultura: a França está no seu coração. Ele mistura toda a simbologia grega, cristã, mas principalmente egípcia. Vai até o início da civilzação. Seu caminho é largo e comprido.


 Sua caligrafia é a cor, pura de preferência, e delineada pelo preto. Manchas, sem meios tons. “Chega ao grau zero da cor e da forma”, diz Renato Brolezzi. O simbolismo, a imagem evocativa, a quietude, o sem-movimento. Toda a tradição está no espírito deste homem.

Volta a Paris para receber uma herança. E fica lá por dois anos. Inquietação. Já não sabe viver o tempo industrializado, precisa do tempo mítico, primevo, onde tudo tem significado: o anzol preso no maxilar inferior esquerdo do atum lhe conta da traição de sua mulher de doze anos. (Pedofilia para o mundo ocidental-nada mais errado!- lá nas terras e águas do Taiti,  normal).


Volta a esta terra exótica e “inculta” que lhe dá toda a bagagem que precisa para sua maneira nova de pintar.
Em 1901 vai às ilhas Marquesas, bem próximas do Taiti. Tenta se suicidar com arsênico, mas como tomou dose excessiva,vomita a maior parte do veneno. Agoniza por dias e morre lentamente.

Gauguin deixa uma arte que tem mais a ver com vitrais e tapeçarias do que com tinta a óleo. Logo Matisse vai se apaixonar por sua obra. E os nabis vão se inspirar neste éden de Gauguin.

Image: Seam M. Sabatini (internet)

Aprendendo

Certo dia quebrei um espelho em muitos cacos. Isso me ajudou mais tarde a compreender o cubismo de Picasso.
Minha casa tinha sótão e porão. Isso me ajudou a entender um pouco mais de id, ego, superego.
Quando vi o Museu de Hiroxima, tive a exata noção da inconsequência humana.
No campo, noite de céu  estrelado, compreendi a curiosidade científica de Galileu.
Estudando a Revolução Francesa concluí que nem de perto nem de longe alcançamos a igualdade, fraternidade e liberdade.
Sozinho e camuflado, passeava um inseto idêntico a uma folha. Compreendi um pouco do evolucionismo de Darwin.
Quando sofri um roubo intelectual, senti na carne o sentido da Ética.
Lendo Grande Sertão:Veredas, vi a capacidade de comunicação do homem letrado bem como do homem iletrado.
Pelo Concílio de Trento entendi a publicidade religiosa e manipulação da Igreja.
Em Atenas, soube que- se assim lhe fosse dado- um grego do séc. V a. C. facilmente manejaria um computador.
Mas ao saber que os pássaros descendem de dinossauros,  três noites não dormi,
e nada mais compreendi.                                   
Angela Weingärtner Becker
Henri de Toulouse Lautrec (1864-1901)

De Toulouse-Lautrec, muitos de nós têm em mente, mais do que seus quadros e cartazes, o seu porte físico: 1,52m de altura. Seus membros inferiores, aos 14 anos, após duas quedas consecutivas, param de crescer. Seu dorso é de tamanho normal. É errado dizer que ele era anão. Ele nasce com propensão à deformidade dos ossos. É de família rica e aristocrática. De uma aristocracia decadente, sem poder político mas ainda com posses e valor simbólico. O pintor não depende de seu trabalho para viver.

 Alone
Sai de sua casa em Toulouse (cidade que sua família dá o nome) e vai a Paris para tentar ser pintor. Sua mãe zelosa o acopanha, mas não fica em Montmartre, onde o filho se instala. Ela passa a morar em uma propriedade nos Champs Élysées. Montmarte é o lugar dos artistas, das prostitutas, dos operários, teatro de variedades, circo, cabarés, bordeis. Do Le Chat Noir, do Moulin Rouge. Em Paris ele estuda pintura e vai ao Louvre estudar História da Arte.
Mulher sentada

 A noite de Toulouse começa cedo. Às 19 horas, lá está ele,  rabiscando nervosamente, a entrada das dançarinas, dos garçons, das prostitutas. E de lá só sai quando amanhece. Passa a noite bebendo e desenhando. Absinto. Espirituoso, popular, libidinoso e mordaz, torna-se “móveis e utensílios” do Moulin Rouge. E desenha com traços cortantes a vida de ambientes fechados, artificiais e brilhantes.
Suzanne Valadon
Capta sobre cartão, com grafismos rápidos, o estímulo psicológico do que vê e quando chega em casa, aplica as cores. Mesmo pintando, a própria cor é veloz, escorregadia, cheia de transparências inconsistentes. Parece com sua vida que lhe escorrega rapidamente. Sua mãe é chamada porque ele se deteriora a olhos vistos. É hospitalizado mas carrega consigo sua  bengala oca,  cheia de....absinto! Volta para casa e tudo recomeça: a noite inicia cedo e termina tarde. Ele se entrega ao mundo underground de Paris. Dorme pouco e trabalha muito. A arte se torna “o ofício de viver” (o historiador Argan cita Pavese).

Toilette

Cor e linha são trabalhadas flutuantes e nervosamente. Não pinta a realidade. Pinta a forma como compreende o mundo na dissolução das coisas. Na virada do século é corrosivo com o clássico. Desconstrói e reconstrói  a realidade segundo um tempo caótico de uma Paris já com 3 milhões de habitantes, onde a classe operária são pessoas saídas da zona rural que vêm abarrotar os fétidos subúrbios parisienses. Ele, Toulouse-Lautrec, percebe tudo e coloca a linha em alucinatório movimento, diz Renato Brolezzi em suas maravilhosas aulas no MASP. A linha já não pára no contorno da cor, mas trepida no quadro, num gesto de independência.

Também, como os impressionistas, Toulouse estuda as gravuras japonesas que mostram apenas o essencial. Vai ser o primeiro a fazer este elemento urbano e publicitário: o cartaz. E estes se multiplicam pela cidade com Jane Avril, La Goulue(a gulosa) Monsieur Valentin, Le Desossé (o desossado) dançarinas de can-can, público da noite.O cancan desconstruía o movimento clássico das bailarinas de Degas. Ele desmonta a convenção humana do tempo.“Sem Toulouse, não haveria Picasso” diz Brolezzi, “toda a história da arte está neste homem”, conclui. Ele traduz toda uma maneira de pensar o desenho, a cor, a concepção fotográfica da composição. Havia estudado muito, pois sem conhecer a tradição não se pode contrapôr-se a ela. Já não é a relação newtoniana que aqui conta, seu tempo não é linear.


Toulouse Lautrec, que privilegiou o mundo efêmero fez uma escolha: escolheu sua pintura e entregou sua vida. Morre completamente degradado pelo absinto, no ano de 1901. Morre o inventor do cartaz e uma  sutil compreensão do novo tempo de impermanências, o tempo da modernidade. Ele tinha apenas 37 anos.


Museu Hermitage

É um símbolo russo. Eu diria mais: é um símbolo da Humanidade, já que tem a característica de agregar as mais diversas tradições, ocidental e oriental. Estar dentro do museu Hermitage é estar numa mostra universal de Arte.
O museu parece um formigueiro de pessoas. Rostos que mostram todas as nacionalidades, filas e filas de excursões, estudantes, gente avulsa, em família ou a sós, aguardam para entrar no complexo de cinco construções que constituem, no centro da cidade de São Petersburgo, às margens do Rio Neva, o museu. Palácio de Inverno, Pequeno Hermitage, Novo Hermitage,Velho Hermitage e o Teatro.
Tudo lá lembra Versailles. A fachada com o “barroco escandaloso”, assim disse a guia ser conhecido o gosto fulgurante de Catarina II. A riqueza em mármores, cristais, tapeçarias, pedras preciosas se misturam em estilos: barroco, rococó, neoclássico. Os melhores arquitetos e artesãos da Itália, Holanda, da Europa enfim (onde havia alguém com talento) eram trazidos para fazer os espelhos, as escadarias, as armas, os frizos, os lustres, a marchetaria, azulejaria, porcelanas, pilastras, balaustradas.

 Luxo é pouco, eu pensava. Já estava à beira da síndrome de Stendhal (conta a lenda que ele se sentira mal, em Florença, por excesso de beleza) e no meu caso, ainda nem tinha visto a coleção. Precisava era respirar fundo, passo firme, ir adiante.


A fundadora do museu é Catarina II, o ano é 1764. Um rico comerciante (Gotzkowski) propõe à imperatriz saldar suas dívidas de impostos com 225 obras, em sua maior parte de pintores holandeses, alemães e flamengos do século XVII. Por aqui entram vários Rembrant, Mengs, Rubens, Van Dick (tendo hoje, ao todo, mais de 500 quadros da belíssima arte flamenga).
 Depois desse início, Catarina não parou mais. Comprava coleção atrás de coleção, era generosa, pagava bem, e tinha bons contatos que a informavam sobre coleções a comprar. E vão chegando obras de qualidade da Itália, da França, da Inglaterra, da Espanha.
Ao final do século XVIII o museu já era um dos maiores da Europa. Em 1852 Nicolás I constrói o Novo Hermitage e assim completa a série de 5 edifícios que compreendem o que chamamos simplesmente de “o Hermitage” (que quer dizer hermético, fechado, reservado, pois ali ficava, com seus íntimos, a dona do palácio).

 Era a primeira vez que se abria ao povo um museu russo.
As obras de arte foram retiradas do Hermitage durante a primeira e segunda guerra mundial e na instauração do poder soviético, em 1918.
A abertura de todas as salas só foi possível em1923 e sob grandes festejos da cidade. Neste ano, foram nacionalizadas todas as coleções particulares de que o governo comunista era ciente. Nem tudo foi acréscimo, porém. Uma boa parte de importantes obras foi vendida ao estrangeiro (Stalin vendeu secretamente obras impressionistas aos americanos, para comprar tratores).
O tocador de Alaúde-Caravaggio
O período da segunda guerra afetou grandemente o museu que, praticamente nas vésperas do Cerco de Leningrado, escondeu na cordilheira dos montes Urais, a parte mais valiosa das obras. Mas o museu não parou. Os professores levavam os alunos diante das paredes vazias e ensinavam arte como se o quadro lá estivesse. Que sutileza de comportamento! Resistiram ao Cerco com garra e quase elegância, como se elegância coubesse naqueles 900 dias de horror dramático. (Recomendo o filme “Leningrado” direção de Aleksandr Buravsky,2009.
A Virgem e o Menino (Madonna Litta) Leonardo da Vinci

Terminado o cerco, já o museu torna a renascer e em 1946 se pode ver as obras nos seus devidos lugares e perfeitamente restauradas.
 Dois anos mais tarde foram transferidas ao museu 298 obras de impressionistas, pós-impressionistas, que estavam espalhadas por vários lugares da Rússia.

O retorno do Filho Pródigo-Rembrant
No período dos anos 90, com a perestroika ele se torna um museu exemplar, centro científico e cultural nacional e multifuncional onde acontecem eventos, tanto de arte, como científicos e culturais.
A bebedora de absinto-Picasso
Falar do Hermitage é tarefa inglória. Por mais que se explique, sempre é insuficiente, frustrante. Sempre é pouco, escasso e incompleto. É preciso ir lá, percorrer suas quase quinhentas salas abarrotadas de Velazquez, Dürer, Goya, Watteau, Hals, Murillo, Caravaggio, Canova, Leonardo da Vinci, Michelângelo etc. Sem falar nas várias salas de Picasso, de Gauguin, Renoir, Kandinski, Cezanne, Matisse.... e sair de lá sentindo que alguma coisa ultrapassou os limites do humano.Talvez um sentimento parecido de quem chega ao pico do Everest.
Grande Sertão: veredas

João Guimarães Rosa

Foi um amigo do Orkut, há  seis anos, que me apresentou o livro. Eu já o havia rondado nas livrarias, com medo e respeito. Faltava coragem para encarar o livro pesado, complicado e adentrar na magia que o envolveu desde sempre. Bernardo (que nunca conheci pessoalmente) me proporcionou algo  belo, inesquecível, grandioso como uma sinfonia. Hoje perdi contato com o amigo sensível, mas lhe serei sempre grata.Tenho ainda alguns e-mails, estes em que comentamos o livro. Hoje li, emocionada. Entre eles, havia este em que me decido a ler a obra:

“Tá bem, amigo. Feliz de (enfim!) começar “Grande Sertão: veredas”. Quero tua proteção para esta empreitada. Darás uma mão à mim e outra à Diadorim. E eu, uma mão a ti e outra a Riobaldo.No centro, uma muda de passarim. Por cima de nós, uma lua faceira de sertão.”


 Foi o que lhe escrevi já tendo espiado o livro que estava em minhas mãos. Mas embrenhar-se naquele sertão, mato fechado, palavras estranhas, um idioma esquisito, português nunca dantes navegado, era a primeira vez. Grunhidos, garatujas de palavras mal acabadas, mastigadas, emendadas ahnnnnnn, Bernardo já percorrera os caminhos, eu não. Então lhe escrevia: "tá difícil, Bernardo" e ele: “vai seguindo, vai lendo até a página 50, eu te peço.” Sim, o marco é a página 50. É o umbral a atravessar. Neste momento parece que recebemos um facão, nosso excalibur do sertão, para cortar o mato fechado, abrir veredas e enfim entrar naquele mundo. O mundo de Riobaldo e sua interminável sessão psicanalítica.

 O livro é tão difícil no começo quanto é difícil aquilo que vai contar a um interlocutor silencioso, seu Compadre Quelemém. “O senhor me dá o silêncio” . “Você é meu amigo e meu estranho”. “O senhor me organiza”.
Todo o romance é uma organização do pensamento de Riobaldo sobre sua vida. É um monólogo. Sequer uma vez, Compadre Quelemém interfere.O assunto desta conversa é o relato de uma viagem real de Riobaldo e outra lembrada, revestida pelo afeto. A matéria vertente escorre pela narrativa, diz Adélia Menezes, com quem fiz um curso de duas tardes, sobre o livro.

“A gente sabe mais de um homem por aquilo que esconde” Em Riobaldo há uma consanguinidade entre a imaginação e a memória. Ele vai revelar-se ao outro e a si mesmo pela atenção qualificada que Compadre Quelemém lhe dá. E ele precisa desesperadamente de um sentido para sua existência, por mais simples e jagunço do sertão que seja. Na verdade, ele é, como todo mundo, um homem complexo. Precisa entender e afinal incorporar a morte de Diadorim. Por isso fala, relata de forma não-linear sua realidade psíquica. “Não bastou a visão feminina do corpo de Diadorim, diz Adélia Menezes, e por isso sempre fala no masculino, ao referir-se a ela. No final do livro é que faz a interiorização do fato.Somente diante de alguém que o “ouve com devoção” que ele vai, por momentos, falar em Diadorim no feminino. Conhece, em comunhão, com seu devotado interlocutor.  “O real estatuto sexual de Diadorim não o fez ressignificar o gênero. Ele continua sentindo seu amor homossexual” continua Adélia, e mistura novamente os gêneros". Sua realidade psíquica é dual, no final das contas.

Durante todo o livro Riobaldo repete “O senhor sabe, o senhor me organiza”. O próprio Riobaldo vai nomeando seus sentimentos, seus fatos, “não importa contar a coisa, o que importa é a sobre-coisa..” Ele vai do caos ao cosmos.E é isso que o poético faz: expressa o inexprimível.Dá nome ao inominável. “o vento é verde” diz João Guimarães Rosa. “A linguagem tem o ofício de nos traduzir” diz outro poeta.

“Explico senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum.”

“Diadorim é minha neblina”

“Qualquer amor já é uma saudezinha; qualquer amor é um descanso no meio da loucura”.
 
João Guimarães Rosa é nosso orgulho, nosso Shakespeare, nosso Cervantes, nosso Joyce. Vejamos o que Adélia Menezes analisa sobre o nome Diadorim, mínima amostragem da genialidade de João Guimarães Rosa:

DIADORIM
 Di = dois(homem  e mulher, androgenia)    
 Dia= luz
 Ador=adorar
 Dia-através
 Dia-dor-im-através da dor

É mesmo uma pena que mais brasileiros não se aventurem pela extraordinária narrativa épica de “Grande Sertão:veredas” onde cada palavra lá está para ser descoberta pelo leitor atento. E se deleitar, e passar dias doente de Rosa, envolto na neblina de Diadorim, com  cheiro de mato e terra. E constatar, como disse Bernardo meu doce amigo “este livro, Angela, é um livro de dualidades, de contrastes, de avessos, de contradições. O mundo é isso. As coisas não são unas. O mal e o bem estão entrelaçados, os sexos estão confundidos, a violência e a paixão estão de mãos dadas. É lindo.

Leiam, vocês conseguirão, eu sei, ultrapassar o marco da página 50.

Angela Weingärtner Becker

Wassily Kandinsky (1866-1944)


Nasce em Moscou, em família abastada e culta. Desde cedo entra em contato com a Arte, principalmente a música. Com a música dodecafônica, por toda a vida, terá uma relação orgânica. (a música atonal –Shönberg, Stravinski- serão importantes para ele porque fogem do previsto, mostram o espanto, reelaboram o código tradicional).
Amarelo, vermelho e azul
Em 1896 vai à Munique, centro cultural da Europa. A cidade atrai artistas e cientistas. Embora a formação artística se dê em Munique, e ele ser um homem cosmopolita, está imbuído da cultura russa. Traz consigo a imagem do vitral, as procissões ortodoxas russas, o colorido, as formas flutuantes. Ele dirá “As formas só têm sentido se expressarem energia”. E assim faz um mergulho na cor como sendo um elemento quase místico. Ele buscava uma reelaboração da vida, uma energia vital cujo nascedouro era a música.

ComposiçãoIV
 Ocasionalmente misturava areia em suas cores para trabalhar a textura. Fala muito na “impressão” como sendo um estímulo do mundo exterior que pode ser pintado. Rompe com a representação, com a solidez geométrica e abre para outros estados de consciência. Pinta o seu interior. A música pura será o fermento da sua pintura abstrata. Pretendeu que as suas formas fossem sutilmente harmonizadas para ressoar com a própria alma do observador.Diante de sua obra é preciso parar tudo.Desarmar-se e ter um olhar puro.Descontaminar-se tanto quanto é possível e deixar que a imagem entre e fale por si, pela sua geometria, pela sua cor. Há harmonias internas a descobrir. Há o diálogo entre as diferenças, entre as semelhanças, equilíbrios e desequilíbrios se organizando em microcosmos de átomos.

ComposiçãoVII

A pintura de Kandinsky não busca agradar os sentidos, nem representar nada. Não há mímeses. São harmonias de cores quentes e frias. É como uma música que é feita de acordes. Está apresentando uma harmonia secreta. Não é fácil despojar-se diante de suas telas, mas esta atitude é fundamental para a apreciação da obra.É quase dizer, “dispa-se e assim veja Kandinsky”. Ele busca a pureza das sensações primárias. É absolutamente musical. Quando perguntaram a ele o que significava uma determinada obra sua, ele responde “Isto se significa”, diz o professor Renato Brolezzi em suas magníficas aulas- na qual este artigo é baseado.

Kandinsky é considerado o primeiro pintor ocidental a produzir uma tela abstrata. É como se dissesse “Não procurem buscar elementos do mundo. Mergulhem nas cores para despertar estados de alma para além do visível”. Kandinsky conhece a teoria das cores a fundo.
Kandisnky será, em sua volta à Rússia, Ministro da Educação. Em 1923 Stalin dá o golpe e vai proibir este tipo de Arte. (a arte que transforma sempre é proibida pelo autoritarismo!). Quer implantar a arte que o povo entende (ou seja, quer manipular pela arte) Kandisnky “fala” em suas pinturas, de liberdade não atrelada às regras dadas e é considerado lá como “arte burguesa decadente”.


Em 1921 deixa a Rússia e vai para Berlim. Desgraçados, a maioria dos pintores russos da época se suicida ou foge. Uma longa agonia da Arte acontece na Rússia. Graças a Paul Klee torna-se professor da Bauhaus, centro de vanguarda, escola de artes aplicadas. Kandinsky ensina vitral, tentando trazer para a Bauhaus a nova espiritualidade, a nova poética.
Em 1933 Hitler termina com a Bauhaus. O nazismo tem um projeto também estético (eliminação do imperfeito, do doentio). Para o Nacional Socialismo (nazismo) não pode haver o triunfo do indivíduo forte e criativo. Isto é mortal para Kandinsky, que ganha o rótulo de “cancro da bolchevização da Arte”.
Em 1937-com a famosa exposição de Arte Degenerada- estão lá presentes Paul Klee e Kandinsky. Ele foge novamente a Paris. Sua vida é uma história de deslocamentos e rejeições. Mudou duas vezes de nacionalidade (alemã e francesa). Quando os nazistas invadiram a França, estava velho demais para nova mudança e cuidou de viver na obscuridade. Tornou-se discreto e viveu tão delicadamente quanto suas pinturas.

Morre aos 78 anos aquele que fez uma das maiores revoluções de todos os tempos, comparado no campo das artes com a grandeza de Einstein e Freud. Junto a Piet Mondrian e Kasimir Malevich, Wassily Kandinsky faz parte do "trio sagrado" da abstração, sendo ele o mais famoso. Em recente visita ao Museu Russo, quase nada de Kandinsky havia. Mas, durante toda a visita (falada em russo e traduzida para o espanhol por Olga) conheci a tradição que afinal de contas, conta muito, conta sempre, na obra de todo o artista.
Angela Weingärtner Becker

Henri Matisse (1869-1954)



Confesso que ao percorrer o Hermitage, bem no fundo de mim pairava um desejo especial, quase como o impulso propulsor da visita. Tratava-se de ver o icônico quadro de Matisse: “A Dança” (1909), feito especialmente para Sergei Shchukim.  É a mais famosa obra (e também a de maiores proporções) que, junto com “A Música” foram feitas especialmente para decorar sua mansão-palácio. Este mesmo colecionador de arte comprou 258 famosas pinturas que incluem Picasso, Monet, Renoir, Cézanne,van Gogh, só pra citar alguns. Foi a maior coleção particular de arte moderna antes do MOMA de NY, como disse o professor de História da Arte, Renato Brolezzi. Com a revolução de 1917, o governo apropria-se da sua coleção.

A Dança
Também no Hermitage encontrei -entre muitos Matisses- o famoso “A Conversação” onde um casal conversa, estáticos como numa pintura bizantina, tendo entre eles uma janela-surpresa que se abre dentro do azul parado.Na falta de anatomia e silêncio do casal, uma iluminada janela. Não há conflito, em Matisse nunca há conflito. Há verossimilhança e equilíbrio absolutos.

A conversação

Matisse nasce de uma família modesta, entra no curso de direito na Sorbonne, e perde-se num mundo mercantilista até que uma crise de apendicite (mergulhei na crise absoluta, diz) funciona como uma revelação e lhe abre caminho para pintura. Abandona o curso e toma aulas de desenho. “Quando comecei a pintar, senti-me transportado ao paraíso” diz ele, embora a arte lhe imponha solidão, sacrifício e até uma certa dose de heroísmo.

      Entra para a academia de Belas Artes onde conhece o pintor simbolista Gustave Moreau, de uma sensibilidade bastante aflorada, que retratava sempre a femme fatale, o poder feminino que pode destruir o homem, temática simbolista.

É o fin-de-siècle, é Paris.

Estúdio Vermelho

Matisse vai comprar obsessivamente, tapetes orientais, viaja ao

 norte da África, ao deserto. Esta experiência vai fasciná-lo.

Em 1896 casa e tem dois filhos. Amélie Parayre, trabalha para

 manter as crianças e o próprio Matisse. É esposa e provedora.

      Como a maioria dos pintores, Matisse também vai até a

 Provence, atrás da luz. Lá encontra Signac e Seurat, pontilhistas,

 que dão um caráter científico à cor. Pela cor, Matisse vai dar

 suntuosidade a cada quadro seu. “A cor tem um valor expressivo

 em si mesmo”. É como se dissesse que quando pinta um verde,

 não significa grama, mas “o verde”. Ele pinta “o azul”, não pinta
 o céu.
Odalisca

Matisse faz uma arte em que busca a voluptuosidade da cor. Não

 há perspectiva, há cor. Tudo é plano e de uma harmonia cromática

 “de poltrona confortável”. Ele mesmo disse “eu sonho com a arte

 da serenidade, algo como uma boa poltrona em que se descansar”.

 De fato, a tapeçaria, as tramas, as cores brilhantes, os estampados

 fazem o mundo de Matisse. É preciso ter um olhar primitivo e algo

 oriental para apreciar Matisse.

 nu azul


      No final da vida, já doente, ele, com a motricidade fina

 prejudicada, recorta.”Agora me restou pensar a cor como objeto”.

 Ele recortava e colava a cor.

Matisse e Picasso fazem a dupla dos maiores pintores do século

 XX. “Mademoiselles D’Avignon” de Picasso e “A Dança”de

Matisse, são os dois grandes quadros modernos.

Angela Weingärtner Becker
Antônio Canova (1757-1822)

Conforme a lenda de Cupido e Psiquê, após noites de amor intenso e anônimo na escuridão, Psiquê acende uma lâmpada e a levanta à altura do rosto do seu amor deitado em seu leito. Curiosa, queria conhecer quem tanto prazer lhe dava. A lâmpada cai e derrama azeite quente sobre Cupido que...foge para sempre. Ao conhecê-lo, ela o perde.
Cupido e Psiquê

Está aí um grupo escultórico que gostaria de ver “Alla tenue lampada” passeio noturno com lanterna, que é feito no museu de Antônio Canova, em Possagno, Itália, sua cidade natal. Porque é assim que “Il cantore della bellezza eterna”, maior escultor do neoclassicismo, um novo Fídeas, deveria ser visto. Ao menos esta escultura que tive a graça de ver duplicadas, tanto no Louvre como no Hermitage.


As três graças

Antônio Canova se reporta com perfeição à escultura grega. O esplendor do corpo feminino, o sonho, a paixão contida, tudo parece flexibilidade e não pedra. De imediato ele nos carrega junto com a dança que são suas esculturas. Com suavidade, leveza, voamos com ele. O vento nas vestes, a delicadeza dos gestos, a dulcíssima sensação de estar entre bibelôs gigantes.O branco se torna luminescente sem deixar de ser carne.

Canova tem mesmo uma estreita relação com a dança. É apreciador, frequentava o teatro, era apaixonado pela música e tinha um amigo, bailarino e coreógrafo, Carlo Blasis, do teatro Scala di Milano, autor de uma enciclopédia de dança.

A grande Guerra foi violenta para as obras de Canova. Braços, mãos, asas de anos, narizes e detalhes tiveram de ser reconstruídos.
Desde Bernini foi considerado o melhor escultor. E foi referência por todo o século XIX. Quem vê Canova logo pensa em Jacques-Louis David, também expoente do neoclassicismo, porém como pintor.

Orfeu

Como muitos, foi enviado à Roma, cidade-museu, para estudar. Teve sucesso imediato. Obteve as graças do Vaticano, as graças de Napoleão Bonaparte. Encomendas e ofertas de toda a Europa. Isto lhe causou grande estresse e dor. Teve seu peito afundado por um apetrecho de escultura -o trapano- que lhe comprimiu o esterno. Foi preciso largar a escultura e dedicar-se à pintura. Passeia pela Alemanha, Áustria onde a arquiduquesa Maria Cristina lhe encomenda um monumento mortuário chamado cenotáfio que se revelou o melhor de todos já feitos.

      Monumento à Maria Cristina da Áustria-detalhe
Em 1802 é convidado por Napoleão para fazer sua estátua. Fica seu amigo pessoal bem como de David, pintor oficial da corte. Também o papa lhe dá o cargo de Inspetor geral das Antigas e Belas Artes do Vaticano. Ali trabalha com gosto e resgata  o espólio artístico arrebatado da Itália. Entre eles o famoso Laocoonte.
Antônio Canova

O grande escultor, era simples e frugal. Discreto e culto. Inteligente e afável. Sempre disposto a ajudar os iniciantes.Generoso a ponto de comprar obras de Arte e anonimamente entregá-las a museus. Gostava da rotina, levantava cedo e trabalhava sem parar. Por duas vezes quase se casou, mas permaneceu solteiro. Homem de poucas palavras, ele falava através do mármore polido com perfeição. Sua obra tem luz de dentro para fora. E voam, e deslizam e dançam.