Grande Sertão: veredas

João Guimarães Rosa

Foi um amigo do Orkut, há  seis anos, que me apresentou o livro. Eu já o havia rondado nas livrarias, com medo e respeito. Faltava coragem para encarar o livro pesado, complicado e adentrar na magia que o envolveu desde sempre. Bernardo (que nunca conheci pessoalmente) me proporcionou algo  belo, inesquecível, grandioso como uma sinfonia. Hoje perdi contato com o amigo sensível, mas lhe serei sempre grata.Tenho ainda alguns e-mails, estes em que comentamos o livro. Hoje li, emocionada. Entre eles, havia este em que me decido a ler a obra:

“Tá bem, amigo. Feliz de (enfim!) começar “Grande Sertão: veredas”. Quero tua proteção para esta empreitada. Darás uma mão à mim e outra à Diadorim. E eu, uma mão a ti e outra a Riobaldo.No centro, uma muda de passarim. Por cima de nós, uma lua faceira de sertão.”


 Foi o que lhe escrevi já tendo espiado o livro que estava em minhas mãos. Mas embrenhar-se naquele sertão, mato fechado, palavras estranhas, um idioma esquisito, português nunca dantes navegado, era a primeira vez. Grunhidos, garatujas de palavras mal acabadas, mastigadas, emendadas ahnnnnnn, Bernardo já percorrera os caminhos, eu não. Então lhe escrevia: "tá difícil, Bernardo" e ele: “vai seguindo, vai lendo até a página 50, eu te peço.” Sim, o marco é a página 50. É o umbral a atravessar. Neste momento parece que recebemos um facão, nosso excalibur do sertão, para cortar o mato fechado, abrir veredas e enfim entrar naquele mundo. O mundo de Riobaldo e sua interminável sessão psicanalítica.

 O livro é tão difícil no começo quanto é difícil aquilo que vai contar a um interlocutor silencioso, seu Compadre Quelemém. “O senhor me dá o silêncio” . “Você é meu amigo e meu estranho”. “O senhor me organiza”.
Todo o romance é uma organização do pensamento de Riobaldo sobre sua vida. É um monólogo. Sequer uma vez, Compadre Quelemém interfere.O assunto desta conversa é o relato de uma viagem real de Riobaldo e outra lembrada, revestida pelo afeto. A matéria vertente escorre pela narrativa, diz Adélia Menezes, com quem fiz um curso de duas tardes, sobre o livro.

“A gente sabe mais de um homem por aquilo que esconde” Em Riobaldo há uma consanguinidade entre a imaginação e a memória. Ele vai revelar-se ao outro e a si mesmo pela atenção qualificada que Compadre Quelemém lhe dá. E ele precisa desesperadamente de um sentido para sua existência, por mais simples e jagunço do sertão que seja. Na verdade, ele é, como todo mundo, um homem complexo. Precisa entender e afinal incorporar a morte de Diadorim. Por isso fala, relata de forma não-linear sua realidade psíquica. “Não bastou a visão feminina do corpo de Diadorim, diz Adélia Menezes, e por isso sempre fala no masculino, ao referir-se a ela. No final do livro é que faz a interiorização do fato.Somente diante de alguém que o “ouve com devoção” que ele vai, por momentos, falar em Diadorim no feminino. Conhece, em comunhão, com seu devotado interlocutor.  “O real estatuto sexual de Diadorim não o fez ressignificar o gênero. Ele continua sentindo seu amor homossexual” continua Adélia, e mistura novamente os gêneros". Sua realidade psíquica é dual, no final das contas.

Durante todo o livro Riobaldo repete “O senhor sabe, o senhor me organiza”. O próprio Riobaldo vai nomeando seus sentimentos, seus fatos, “não importa contar a coisa, o que importa é a sobre-coisa..” Ele vai do caos ao cosmos.E é isso que o poético faz: expressa o inexprimível.Dá nome ao inominável. “o vento é verde” diz João Guimarães Rosa. “A linguagem tem o ofício de nos traduzir” diz outro poeta.

“Explico senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum.”

“Diadorim é minha neblina”

“Qualquer amor já é uma saudezinha; qualquer amor é um descanso no meio da loucura”.
 
João Guimarães Rosa é nosso orgulho, nosso Shakespeare, nosso Cervantes, nosso Joyce. Vejamos o que Adélia Menezes analisa sobre o nome Diadorim, mínima amostragem da genialidade de João Guimarães Rosa:

DIADORIM
 Di = dois(homem  e mulher, androgenia)    
 Dia= luz
 Ador=adorar
 Dia-através
 Dia-dor-im-através da dor

É mesmo uma pena que mais brasileiros não se aventurem pela extraordinária narrativa épica de “Grande Sertão:veredas” onde cada palavra lá está para ser descoberta pelo leitor atento. E se deleitar, e passar dias doente de Rosa, envolto na neblina de Diadorim, com  cheiro de mato e terra. E constatar, como disse Bernardo meu doce amigo “este livro, Angela, é um livro de dualidades, de contrastes, de avessos, de contradições. O mundo é isso. As coisas não são unas. O mal e o bem estão entrelaçados, os sexos estão confundidos, a violência e a paixão estão de mãos dadas. É lindo.

Leiam, vocês conseguirão, eu sei, ultrapassar o marco da página 50.

Angela Weingärtner Becker

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