Iberê Camargo-1914-1994
 

Acabo de chegar da exposição “Um trágico nos Trópicos” de Iberê Camargo, no Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo. É sempre uma experiência de dor existencial ver a sua obra. Principalmente a sua fase madura, quando alguns anos antes de morrer, volta à figura humana, com telas enormes com mais de 2 ou 3 metros.



Iberê é, para mim, o melhor. Nenhum outro brasileiro ousou tanto. É ele que vai mais fundo, o que encara uma autenticidade doída, o que aborda a finitude e a tragicidade da vida de uma forma direta. Ele olha o horror nos olhos. Com tinta, ele nos grita: a vida é patética! Com palavras, em suas entrevistas, nos fala “a vida dói”. Parece dizer a nós brasileiros “encarem vossa pseudo felicidade, vossa euforia falsa. A vida é trágica e é nela que estamos metidos até o pescoço”. Iberê nos sacode de um sonho ingênuo.
 
No tempo-1992

Seus ciclistas e seus idiotas são acontecimentos da superfície da tela e na tela se resumem. Nada tem de representativo da realidade. Mas o que nos chega é tão intenso, o gesto pictórico é tão duro e robusto que nos cai como um raio em nossa cabeça.  Os dramas da História, as guerras, as bombas, as mortes, o abandono, as dores físicas e emocionais estão todas ali trancadas nos seus quadros e explodindo em eco dentro de nós. Não tem escape.
 
da série "Tudo te é falso e inútil", 1994
 Ver sua série "Tudo te é falso e inútil" é atravessar um túnel de solidão, melancolia, nonsense, desespero. Seus carretéis  que a princípio nos embalam em tenra infância chegam a nós, só para depois nos lançar na maior miséria possível. A revista Time, quando anunciou sua morte, teria escrito que Iberê Camargo “expressou a miséria humana de forma impiedosamente honesta”. É isso.
 
Ciclista

 No seguir da exposição tomamos um fôlego ao ver seu tema querido, os carretéis. Na ante-sala deparamos com os próprios carretéis empilhados, outros esparramados como se ele recém acabasse de brincar em sua infância longínqua na cidade de Restinga Seca, Rio Grande do Sul. Uma pequena alegria e em seguida a solidão de abandono nos invade. A saudade da infância, o paraíso perdido de todos nós. Os carretéis se sucedem em mil formas, cada vez mais abstratos, e eis que vemos um quadro onde suas formas explodem  na tela. Há coloridos inusitados, milhões de cores!
 
 
 

 Porém nada nos aquieta em Iberê, nada nos consola. "O drama, trago-o na alma. A minha pintura, sombria, dramática, suja, corresponde à verdade mais profunda que habita no íntimo de uma burguesia que cobre a miséria do dia-a-dia com o colorido das orgias e da alienação do povo. Não faço mortalha colorida", diria ele. É verdade, ele não faz mortalha colorida, não tergiversa, não negocia. 

A exposição segue tendo a morte como interlocutora: morte da infância, morte da alegria, morte da lucidez. Seus idiotas têm rosto cruel, olhos escavados, burlescos, um esgar de sorriso. Pintados com um azul noite, aquática transparência suja de branco leitoso, têm formas de amebas que sorriem para si, banguelas e deformadas. Uma expressividade grotesca de criança envelhecida em tubo de laboratório. A conclusão é imediata “somos também este idiota, todos somos”.
 

 Clarice Lispector definiu Iberê como “um homem alto, um pouco curvo, olhar de grande mansidão, pele morena, ar ascético de monge”. Teria perguntado: “Iberê por que é que você pinta?” e ele respondeu que só saberia dizer por que pintava "quando tivesse descoberto o que era".
Angela Weingärtner Becker