Image: Seam M. Sabatini (internet)

Aprendendo

Certo dia quebrei um espelho em muitos cacos. Isso me ajudou mais tarde a compreender o cubismo de Picasso.
Minha casa tinha sótão e porão. Isso me ajudou a entender um pouco mais de id, ego, superego.
Quando vi o Museu de Hiroxima, tive a exata noção da inconsequência humana.
No campo, noite de céu  estrelado, compreendi a curiosidade científica de Galileu.
Estudando a Revolução Francesa concluí que nem de perto nem de longe alcançamos a igualdade, fraternidade e liberdade.
Sozinho e camuflado, passeava um inseto idêntico a uma folha. Compreendi um pouco do evolucionismo de Darwin.
Quando sofri um roubo intelectual, senti na carne o sentido da Ética.
Lendo Grande Sertão:Veredas, vi a capacidade de comunicação do homem letrado bem como do homem iletrado.
Pelo Concílio de Trento entendi a publicidade religiosa e manipulação da Igreja.
Em Atenas, soube que- se assim lhe fosse dado- um grego do séc. V a. C. facilmente manejaria um computador.
Mas ao saber que os pássaros descendem de dinossauros,  três noites não dormi,
e nada mais compreendi.                                   
Angela Weingärtner Becker
Henri de Toulouse Lautrec (1864-1901)

De Toulouse-Lautrec, muitos de nós têm em mente, mais do que seus quadros e cartazes, o seu porte físico: 1,52m de altura. Seus membros inferiores, aos 14 anos, após duas quedas consecutivas, param de crescer. Seu dorso é de tamanho normal. É errado dizer que ele era anão. Ele nasce com propensão à deformidade dos ossos. É de família rica e aristocrática. De uma aristocracia decadente, sem poder político mas ainda com posses e valor simbólico. O pintor não depende de seu trabalho para viver.

 Alone
Sai de sua casa em Toulouse (cidade que sua família dá o nome) e vai a Paris para tentar ser pintor. Sua mãe zelosa o acopanha, mas não fica em Montmartre, onde o filho se instala. Ela passa a morar em uma propriedade nos Champs Élysées. Montmarte é o lugar dos artistas, das prostitutas, dos operários, teatro de variedades, circo, cabarés, bordeis. Do Le Chat Noir, do Moulin Rouge. Em Paris ele estuda pintura e vai ao Louvre estudar História da Arte.
Mulher sentada

 A noite de Toulouse começa cedo. Às 19 horas, lá está ele,  rabiscando nervosamente, a entrada das dançarinas, dos garçons, das prostitutas. E de lá só sai quando amanhece. Passa a noite bebendo e desenhando. Absinto. Espirituoso, popular, libidinoso e mordaz, torna-se “móveis e utensílios” do Moulin Rouge. E desenha com traços cortantes a vida de ambientes fechados, artificiais e brilhantes.
Suzanne Valadon
Capta sobre cartão, com grafismos rápidos, o estímulo psicológico do que vê e quando chega em casa, aplica as cores. Mesmo pintando, a própria cor é veloz, escorregadia, cheia de transparências inconsistentes. Parece com sua vida que lhe escorrega rapidamente. Sua mãe é chamada porque ele se deteriora a olhos vistos. É hospitalizado mas carrega consigo sua  bengala oca,  cheia de....absinto! Volta para casa e tudo recomeça: a noite inicia cedo e termina tarde. Ele se entrega ao mundo underground de Paris. Dorme pouco e trabalha muito. A arte se torna “o ofício de viver” (o historiador Argan cita Pavese).

Toilette

Cor e linha são trabalhadas flutuantes e nervosamente. Não pinta a realidade. Pinta a forma como compreende o mundo na dissolução das coisas. Na virada do século é corrosivo com o clássico. Desconstrói e reconstrói  a realidade segundo um tempo caótico de uma Paris já com 3 milhões de habitantes, onde a classe operária são pessoas saídas da zona rural que vêm abarrotar os fétidos subúrbios parisienses. Ele, Toulouse-Lautrec, percebe tudo e coloca a linha em alucinatório movimento, diz Renato Brolezzi em suas maravilhosas aulas no MASP. A linha já não pára no contorno da cor, mas trepida no quadro, num gesto de independência.

Também, como os impressionistas, Toulouse estuda as gravuras japonesas que mostram apenas o essencial. Vai ser o primeiro a fazer este elemento urbano e publicitário: o cartaz. E estes se multiplicam pela cidade com Jane Avril, La Goulue(a gulosa) Monsieur Valentin, Le Desossé (o desossado) dançarinas de can-can, público da noite.O cancan desconstruía o movimento clássico das bailarinas de Degas. Ele desmonta a convenção humana do tempo.“Sem Toulouse, não haveria Picasso” diz Brolezzi, “toda a história da arte está neste homem”, conclui. Ele traduz toda uma maneira de pensar o desenho, a cor, a concepção fotográfica da composição. Havia estudado muito, pois sem conhecer a tradição não se pode contrapôr-se a ela. Já não é a relação newtoniana que aqui conta, seu tempo não é linear.


Toulouse Lautrec, que privilegiou o mundo efêmero fez uma escolha: escolheu sua pintura e entregou sua vida. Morre completamente degradado pelo absinto, no ano de 1901. Morre o inventor do cartaz e uma  sutil compreensão do novo tempo de impermanências, o tempo da modernidade. Ele tinha apenas 37 anos.


Museu Hermitage

É um símbolo russo. Eu diria mais: é um símbolo da Humanidade, já que tem a característica de agregar as mais diversas tradições, ocidental e oriental. Estar dentro do museu Hermitage é estar numa mostra universal de Arte.
O museu parece um formigueiro de pessoas. Rostos que mostram todas as nacionalidades, filas e filas de excursões, estudantes, gente avulsa, em família ou a sós, aguardam para entrar no complexo de cinco construções que constituem, no centro da cidade de São Petersburgo, às margens do Rio Neva, o museu. Palácio de Inverno, Pequeno Hermitage, Novo Hermitage,Velho Hermitage e o Teatro.
Tudo lá lembra Versailles. A fachada com o “barroco escandaloso”, assim disse a guia ser conhecido o gosto fulgurante de Catarina II. A riqueza em mármores, cristais, tapeçarias, pedras preciosas se misturam em estilos: barroco, rococó, neoclássico. Os melhores arquitetos e artesãos da Itália, Holanda, da Europa enfim (onde havia alguém com talento) eram trazidos para fazer os espelhos, as escadarias, as armas, os frizos, os lustres, a marchetaria, azulejaria, porcelanas, pilastras, balaustradas.

 Luxo é pouco, eu pensava. Já estava à beira da síndrome de Stendhal (conta a lenda que ele se sentira mal, em Florença, por excesso de beleza) e no meu caso, ainda nem tinha visto a coleção. Precisava era respirar fundo, passo firme, ir adiante.


A fundadora do museu é Catarina II, o ano é 1764. Um rico comerciante (Gotzkowski) propõe à imperatriz saldar suas dívidas de impostos com 225 obras, em sua maior parte de pintores holandeses, alemães e flamengos do século XVII. Por aqui entram vários Rembrant, Mengs, Rubens, Van Dick (tendo hoje, ao todo, mais de 500 quadros da belíssima arte flamenga).
 Depois desse início, Catarina não parou mais. Comprava coleção atrás de coleção, era generosa, pagava bem, e tinha bons contatos que a informavam sobre coleções a comprar. E vão chegando obras de qualidade da Itália, da França, da Inglaterra, da Espanha.
Ao final do século XVIII o museu já era um dos maiores da Europa. Em 1852 Nicolás I constrói o Novo Hermitage e assim completa a série de 5 edifícios que compreendem o que chamamos simplesmente de “o Hermitage” (que quer dizer hermético, fechado, reservado, pois ali ficava, com seus íntimos, a dona do palácio).

 Era a primeira vez que se abria ao povo um museu russo.
As obras de arte foram retiradas do Hermitage durante a primeira e segunda guerra mundial e na instauração do poder soviético, em 1918.
A abertura de todas as salas só foi possível em1923 e sob grandes festejos da cidade. Neste ano, foram nacionalizadas todas as coleções particulares de que o governo comunista era ciente. Nem tudo foi acréscimo, porém. Uma boa parte de importantes obras foi vendida ao estrangeiro (Stalin vendeu secretamente obras impressionistas aos americanos, para comprar tratores).
O tocador de Alaúde-Caravaggio
O período da segunda guerra afetou grandemente o museu que, praticamente nas vésperas do Cerco de Leningrado, escondeu na cordilheira dos montes Urais, a parte mais valiosa das obras. Mas o museu não parou. Os professores levavam os alunos diante das paredes vazias e ensinavam arte como se o quadro lá estivesse. Que sutileza de comportamento! Resistiram ao Cerco com garra e quase elegância, como se elegância coubesse naqueles 900 dias de horror dramático. (Recomendo o filme “Leningrado” direção de Aleksandr Buravsky,2009.
A Virgem e o Menino (Madonna Litta) Leonardo da Vinci

Terminado o cerco, já o museu torna a renascer e em 1946 se pode ver as obras nos seus devidos lugares e perfeitamente restauradas.
 Dois anos mais tarde foram transferidas ao museu 298 obras de impressionistas, pós-impressionistas, que estavam espalhadas por vários lugares da Rússia.

O retorno do Filho Pródigo-Rembrant
No período dos anos 90, com a perestroika ele se torna um museu exemplar, centro científico e cultural nacional e multifuncional onde acontecem eventos, tanto de arte, como científicos e culturais.
A bebedora de absinto-Picasso
Falar do Hermitage é tarefa inglória. Por mais que se explique, sempre é insuficiente, frustrante. Sempre é pouco, escasso e incompleto. É preciso ir lá, percorrer suas quase quinhentas salas abarrotadas de Velazquez, Dürer, Goya, Watteau, Hals, Murillo, Caravaggio, Canova, Leonardo da Vinci, Michelângelo etc. Sem falar nas várias salas de Picasso, de Gauguin, Renoir, Kandinski, Cezanne, Matisse.... e sair de lá sentindo que alguma coisa ultrapassou os limites do humano.Talvez um sentimento parecido de quem chega ao pico do Everest.
Grande Sertão: veredas

João Guimarães Rosa

Foi um amigo do Orkut, há  seis anos, que me apresentou o livro. Eu já o havia rondado nas livrarias, com medo e respeito. Faltava coragem para encarar o livro pesado, complicado e adentrar na magia que o envolveu desde sempre. Bernardo (que nunca conheci pessoalmente) me proporcionou algo  belo, inesquecível, grandioso como uma sinfonia. Hoje perdi contato com o amigo sensível, mas lhe serei sempre grata.Tenho ainda alguns e-mails, estes em que comentamos o livro. Hoje li, emocionada. Entre eles, havia este em que me decido a ler a obra:

“Tá bem, amigo. Feliz de (enfim!) começar “Grande Sertão: veredas”. Quero tua proteção para esta empreitada. Darás uma mão à mim e outra à Diadorim. E eu, uma mão a ti e outra a Riobaldo.No centro, uma muda de passarim. Por cima de nós, uma lua faceira de sertão.”


 Foi o que lhe escrevi já tendo espiado o livro que estava em minhas mãos. Mas embrenhar-se naquele sertão, mato fechado, palavras estranhas, um idioma esquisito, português nunca dantes navegado, era a primeira vez. Grunhidos, garatujas de palavras mal acabadas, mastigadas, emendadas ahnnnnnn, Bernardo já percorrera os caminhos, eu não. Então lhe escrevia: "tá difícil, Bernardo" e ele: “vai seguindo, vai lendo até a página 50, eu te peço.” Sim, o marco é a página 50. É o umbral a atravessar. Neste momento parece que recebemos um facão, nosso excalibur do sertão, para cortar o mato fechado, abrir veredas e enfim entrar naquele mundo. O mundo de Riobaldo e sua interminável sessão psicanalítica.

 O livro é tão difícil no começo quanto é difícil aquilo que vai contar a um interlocutor silencioso, seu Compadre Quelemém. “O senhor me dá o silêncio” . “Você é meu amigo e meu estranho”. “O senhor me organiza”.
Todo o romance é uma organização do pensamento de Riobaldo sobre sua vida. É um monólogo. Sequer uma vez, Compadre Quelemém interfere.O assunto desta conversa é o relato de uma viagem real de Riobaldo e outra lembrada, revestida pelo afeto. A matéria vertente escorre pela narrativa, diz Adélia Menezes, com quem fiz um curso de duas tardes, sobre o livro.

“A gente sabe mais de um homem por aquilo que esconde” Em Riobaldo há uma consanguinidade entre a imaginação e a memória. Ele vai revelar-se ao outro e a si mesmo pela atenção qualificada que Compadre Quelemém lhe dá. E ele precisa desesperadamente de um sentido para sua existência, por mais simples e jagunço do sertão que seja. Na verdade, ele é, como todo mundo, um homem complexo. Precisa entender e afinal incorporar a morte de Diadorim. Por isso fala, relata de forma não-linear sua realidade psíquica. “Não bastou a visão feminina do corpo de Diadorim, diz Adélia Menezes, e por isso sempre fala no masculino, ao referir-se a ela. No final do livro é que faz a interiorização do fato.Somente diante de alguém que o “ouve com devoção” que ele vai, por momentos, falar em Diadorim no feminino. Conhece, em comunhão, com seu devotado interlocutor.  “O real estatuto sexual de Diadorim não o fez ressignificar o gênero. Ele continua sentindo seu amor homossexual” continua Adélia, e mistura novamente os gêneros". Sua realidade psíquica é dual, no final das contas.

Durante todo o livro Riobaldo repete “O senhor sabe, o senhor me organiza”. O próprio Riobaldo vai nomeando seus sentimentos, seus fatos, “não importa contar a coisa, o que importa é a sobre-coisa..” Ele vai do caos ao cosmos.E é isso que o poético faz: expressa o inexprimível.Dá nome ao inominável. “o vento é verde” diz João Guimarães Rosa. “A linguagem tem o ofício de nos traduzir” diz outro poeta.

“Explico senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum.”

“Diadorim é minha neblina”

“Qualquer amor já é uma saudezinha; qualquer amor é um descanso no meio da loucura”.
 
João Guimarães Rosa é nosso orgulho, nosso Shakespeare, nosso Cervantes, nosso Joyce. Vejamos o que Adélia Menezes analisa sobre o nome Diadorim, mínima amostragem da genialidade de João Guimarães Rosa:

DIADORIM
 Di = dois(homem  e mulher, androgenia)    
 Dia= luz
 Ador=adorar
 Dia-através
 Dia-dor-im-através da dor

É mesmo uma pena que mais brasileiros não se aventurem pela extraordinária narrativa épica de “Grande Sertão:veredas” onde cada palavra lá está para ser descoberta pelo leitor atento. E se deleitar, e passar dias doente de Rosa, envolto na neblina de Diadorim, com  cheiro de mato e terra. E constatar, como disse Bernardo meu doce amigo “este livro, Angela, é um livro de dualidades, de contrastes, de avessos, de contradições. O mundo é isso. As coisas não são unas. O mal e o bem estão entrelaçados, os sexos estão confundidos, a violência e a paixão estão de mãos dadas. É lindo.

Leiam, vocês conseguirão, eu sei, ultrapassar o marco da página 50.

Angela Weingärtner Becker