Les
Demoiselles d’Avignon
Pablo
Ruiz Picasso-1907
“Nenhuma pintura pode
ser explicada em
palavras. Mas as palavras são, por vezes, úteis indicadores,
ajudam a dissipar equívocos” É assim que nos fala E.H.Gombrich, referindo-se à
dificuldade de transpor um código a outro. É verdade. Theodor Adorno nos diz da
impossibilidade de um contato absolutamente purificado
diante da obra de arte, por estarmos imersos em conceitos ideológicos. E que
embora a obra seja de caráter enigmático,
“como uma mônada reflete o todo
social sem tentar uma porta para ele”, é possível apreender o seu conteúdo de verdade. Seu caráter hermético pode ser
analisado através dos elementos com que ela nos fala: forma, material, estilo, mímeses, racionalidade, sociedade, etc.
Les Demoiselles d’Avignon, é finalizada em 1907 (com 9 meses de estudos e mais de
800 esboços!) Não se conhece outra obra que tenha sido precedida de tão grande
preparação.Pintada a óleo sobre tela, e medindo 243,9 x 233,7cm está em Nova Yorque , no The Museum of Modern Art, o MOMA. La
Calle Avignon é um ponto de meretrício em Barcelona. Picasso
teria adotado um tema baudelaireano ‘que destacava o pária social ou atividades
marginalizadas’ de uma França que amargava os resultados ainda vivos da Guerra
Franco-prussiana. Nesta época, ele e seu grupo (Apollinaire, Gertrud e Leo
Stein) alinhavam-se à esquerda em termos políticos e sociais. As cinco mulheres
são prostitutas do país natal de Pablo Ruiz Picasso, Espanha. Frontalmente
agressivas, as figuras estão relacionadas
ao medo e fascinação mórbida do pintor (e contemporâneos) pela
prostituição e a doença venérea que grassava a Europa.Picasso estaria
referindo-se à redenção/danação de sua origem católica? É uma das possibilidades.
Ele trabalha com a força de um touro e com a sabedoria de uma coruja (animais
inúmeras vezes representados, como sua mitologia pessoal) e vai concebendo a
obra, num processo de radicalização da forma e do conteúdo, tornando-se mais
ousado e desantropomorfisador, para
usar a palavra de Georg Luckács. Desprende-se do orgânico, abstrai, tornando
sua arte produto do intelecto. No entanto continua a mímeses, pois ele, além de desejar uma arte monumental (contrária
às pequenas dimensões do fauvismo e impressionismo) ainda não quer “independência
absoluta” da realidade já que seria “o esvaziamento do conteúdo e o conseqüente
empobrecimento formal”(Georg Lukács)
Um antecedente
significativo para a concepção de Les
Demoiselles d’Avignon é “O Retrato de Gertrude Stein”. Aqui já
estão os traços primitivistas inspirados
pelas máscaras africanas, mas que Picasso nega. No livro “Autobiografia de
Alice Toklas” é narrado que, em visita à casa da escritora, sua amiga, teria
examinado longamente uma peça africana e mais tarde em entrevista diria “Arte
Africana? Que é isso? Não conheço”. Ora,
o artista não é obrigado a entender de sua própria obra mas a verdade é que por
volta da virada do século, muitos artistas que se opunham ao processo das
forças de urbanização na sociedade capitalista ocidental, já demonstravam uma tendência
primitiva que se produzia na
sociedade e internamente na arte moderna. Os artistas de vanguarda, mantinham
de algum modo, contato com esta expressão artística “incontaminada”. Ou acaso
seria como o filósofo-historiador Michel Foucault concebe na sua “teoria do
discurso” uma relação de poder do
europeu sobre os povos “atrasados e incivilzados”? O certo é que o primitivismo era já uma complexa rede de
interesses ideológicos, estéticos, científicos e antropológicos e estas idéias
estão inscritas em Les
Demoiselles d’Avignon. A questão das artes tribais
foi sem dúvida fundamental na sua concepção. Mas não só ela. A obra de Cézanne de
forte estrutura, opacidade, solidez e peso da matéria é por sua vez, a outra
grande fonte de Picasso (com menor poder, Ingres e Degas) É Cézanne que faz a
transição para o conceitual. É ele quem vê a realidade como cilindro, cubo,
esfera, ou seja, pela abstração intelectual e não pela sensação visual. É ele
quem retira a pintura do campo sensual (como viam os impressionistas) para
colocá-la no campo conceitual. “Cor para construir, não para emocionar” diz
Carlos Cavalcanti, historiador de arte. E aqui, pulemos de Cézanne para o
longínquo Platão e veremos as semelhanças na passagem do Filebo, citado por
Read: “Ora, não quero dizer por beleza de
formas o que a maioria das pessoas esperaria, tais como as das criaturas vivas
ou imagens. Quero dizer linhas, retas e curvas e as superfícies ou formas
sólidas produzidas a partir delas por tornos, réguas e esquadros”.
Vê-se que a idéia vem
de longa data. E, na virada do século, Cezanne vai abrir o caminho para o
cubismo, não pelo esquadro ou régua, mas pela textura da cor.
Em Paris, uma coincidência favorável vem a
calhar para esta onda gigantesca que vai dar em
Les Demoiselles
d’Avignon: a exposição de máscaras africanas no Museu Etnográfico Trocadero
e a exposição de Paul Cézanne, quase concomitantes.São grandes eventos da
Arte.Picasso está presente. Em Les Demoiselles d’Avignon, ele traça cinco imensas
mulheres geométricas, esquematizadas ao estilo da arte africana. Elas encaram
frontalmente o observador, conferindo grande poder à obra. Ele distorce,
simplifica, deforma. Amontoa as figuras num plano único. O fundo avança e se
retrai, sem uma racionalidade que não seja formal. As mulheres são inventadas
intelectualmente. “Pensadas e não sentidas” como dizia Braque. A mulher do
canto direito é vista simultaneamente de frente e de costas. A da esquerda,
face de perfil e olho frontal,remete à arte egípcia. As do meio, lembram a arte
ibéria e também a Vênus de Milo. Picasso passa todas as tradições pelo seu
filtro pessoal, re-arranjando seus elementos numa nova linguagem pictórica.
Facetados como cacos de vidro, os cinco nus de anatomia angulosa, quebram a
perspectiva tradicional. Uma natureza morta
faz a transição entre os grupos, apontando para o centro do quadro. As
cores são uma síntese entre monocromia e contraste. Amarelo, branco, castanho e
um azul forte separam a composição. O grafismo apurado garante as sensações de
volumes. Os corpos possuem várias visões de frente e de lado, inconcebíveis
fora do contexto do quadro. “Nenhum artista europeu ousou tanto”, diz
Apollinaire, em 1913. É muito provável que sim.
Bibliografia
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FREITAS, Verlaine. Adorno & a Arte Contemporânea.Coleção Passo-a-passo.Rio de Janeiro: JorgeZahar, 2003
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