Museu Picasso e Las Meninas



O museu de Barcelona foi o primeiro “Museu Picasso” criado ainda em vida do artista. (Há um, na França, outro em Málaga, sua cidade natal). Seu amigo de juventude, Jaume Sabartés doa sua coleção à cidade. O museu abre as portas em 1963, no palácio Aguilar. Logo, Picasso doa quase mil obras que, junto com as 58 telas da série As Meninas, convertem o museu em importante espaço. Principalmente de obras relativas à sua juventude e de seu tempo em Barcelona. No Museu há também importante coleção de gravuras e cerâmicas. Estas, doadas por Jacqueline Roque, a esposa com quem viveu até o fim de seus dias.

Las Meninas, Diogo Velázquez. Museu do Prado, Madri, 1656

Em Barcelona Picasso estuda na Escola de BelasArtes. Lá, mergulha no universo da vanguarda. Conhece artistas e intelectuais que frequentam o cabaré Els Quatre Gats. Pensão, pub, restaurante, para o qual desenhará o menu. O espaço se torna um centro das discusssões modernistas, como em Le Chat Noir, de Paris.
Picasso não veio à inauguração do seu museu. Jurara não pôr os pés na Espanha, enquanto grassava o regime franquista. Supervisionou plantas e  planos, de Paris.
Ao entrar no Palácio Aguilar (5 casas unidas para aumentar espaço de exposição) entramos direto em conexão com aquele Deus da pintura do século XX. Elegância antiga e formas modernas já o anunciavam. As mansões solenes sofrem intervenções modernas, adaptando-se (não sem polêmicas) à sua nova função.



Vi os quadros de juventude de Picasso. Fase azul. Fase Rosa. Retratos. Vi obras pouco divulgadas. Diante da série Las Meninas estanquei. Picasso fez 58 versões do quadro de Velázquez! (lembrei de Demoiselles D’Avignon para o qual fez cerca de 800 esboços). Ele varia tanto, a ponto de haver um colapso do bidimensional, e entra no quadro. Revira, planifica, modifica. Flerta perigosamente com a obsessão. De assimetria em assimetria, encontra a síntese. Veloz, vai desconstruindo e reconstruindo em mil possibilidades. E a gente vai sendo tomado por ele. Que febre! Sua criatividade e tenacidade não se completam nunca. Há sempre mais e mais conteúdos para mostrar. Que conquista íntima de liberdade! Morre, só para ressuscitar de outra forma. Pinta Velázquez  febrilmente. E com ele está nas células, na carne. O corpo se lembra, as ariculações se lembram da obra do Prado. Ele devora a obra, recria, brinca de deus. Faz do ortodoxo, o heterodoxo. É o touro e o toureiro. .

Saio repleta de Picasso e chego em casa sem o conhecer.Olho-me ao espelho, recomponho uma figura cubista. No apartamento de baixo tocam uma música dodecafônica, e um cão late quadrado.Picasso tem esse efeito sobre mim: demora a evanescer.
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Um homem conseguiu cortar a história da arte em antes e depois. Sobre Picasso, não tenho conceito, tenho sensações. Neste caso, o escritor argentino, Ernesto Sábato, diria “A razão não serve para a existência” pelo menos para mim, em se tratando de Picasso.
Angela Weingärtner Becker
Wisława Szymborska (Kórnik, 1923) Poetisa com obra que tem como tema as vicissitudes da Polônia moderna. Emprega uma linguagem simples e coloquial, herança do realismo social que dominou a Europa oriental, mas sua modernidade se revela no tom irônico e na complexidade formal de muitas de suas poesias. Recebeu o Nobel de Literatura de 1996. (Wikipédia)



Elogio dos Sonhos



Nos sonhos
eu pinto como Vermeer van Delft.

Falo grego fluente 
e não só com os vivos.

Dirijo um carro 
que me obedece.

Tenho talento,
escrevo grandes poemas.

Escuto vozes
não menos que os mais veneráveis santos.

Vocês se espantariam 
com minha performance ao piano.

Flutuo no ar como se deve 
isto é, sozinha.

Ao cair do telhado
desço de manso na relva.

Respiro sem problema 
debaixo d'água.

Não reclamo:
consegui descobrir a Atlântida.

Fico feliz de sempre poder acordar 
pouco antes de morrer.

Assim que começa a guerra 
me viro do melhor lado.

Sou, mas não tenho que ser 
filha da minha época.

Faz alguns anos 
vi dois sóis.

E anteontem um pinguim. 
Com toda a clareza.


Nota: A poetisa polonesa morre em 1/1/2012, em Cracóvia, na Polônia.Em 1996 foi laureada com o Prêmio Nobel de Literatura.
O David de Michelângelo
Entrei na Galleria dell’Accademia, Firenze, em raro momento de calma. Pude sentar diante do David, de Michelângelo. Apreciá-lo demoradamente. Tatear com meus olhos cada pedaço da obra, os pés, as veias das mãos, o pescoço forte, a sua nudez.
Eu  tivera experiência semelhante com Moisés, em Roma. Quando cheguei, o padre encarregado estava fechando a Igreja. Pedi para entrar: “no, no, chiuso” não, fechado, disse, sem mesmo me olhar.  Em seguida, abanando a mão, resmungou “ah va, va,va!”  E fui. O prazer de estar sozinha com aquela obra-prima foi único. Quase um fetiche. Pude sentir a majestade, a imponência do líder. Ao concluir a obra, o próprio Michelângelo admira-se de sua perfeição e diz: “Perché non parli?” Por que não falas? 

                                                         

Detalhe de David

Agora eu estava diante de David. A escultura é do tipo que impõe silêncio na sala. Mesmo com pouca gente naquela hora, estava mergulhado num mundo feito de silêncio e formas. A estátua é uma autoridade em si. Pelos 5,17m, pela perfeição, pelo realismo anatômico. Impressionante. Não há a menor dúvida de que estamos diante de algo muito, muito grandioso.
Michelângelo encontrou um enorme bloco de mármore de Carrara, abandonado ao lado de uma igreja. De 1501 a 1503, se fecha numa casa perto da catedral e esculpe o David. Reinventa o tema do “nu heróico”. E o nu passa a ser a sua especialidade.
Ele não teve um mestre para a escultura. Quando perguntavam quem foi seu mestre, ele dizia que seu talento viera através do leite da esposa do mestre de cantaria, que o amamentara. Uma maneira brincalhona de dizer que ninguém lhe ensinara.
A presença de Michelângelo marca todo um século. Ele sempre se considerou escultor e não pintor. Ele diz “a escultura é a lanterna da pintura” (tem rixa intelectual com Leonardo da Vinci que defende a pintura como arte maior). Leonardo dizia que a escultura era  uma arte manual, como o fazer de um pedreiro, um padeiro. “O pintor sabe fazer a tridimensionalidade no plano. O desenho é “cosa mentale”, dizia.
Michelangelo usa a “licença”, a maneira de fazer. Graças a ele o artista adquiria esta liberdade. Ele se torna um modelo a ser imitado.
No texto de Vasari diz: “Michelângelo é filho de Florença, discípulo de Giotto , filho dos Médicis”. Diz ainda: “a configuração das constelações fez com que Deus fizesse Michelângelo nascer em Florença”.
Tanto em Vasari como em Condivi, biógrafos do artista dizem que ele fora criado por Deus. Cristo e Michelângelo são enviados por Deus. O próprio Michelângelo quis que assim fosse considerado.
Michelângelo nunca mede seus esboços, é tudo no “olho”. Ele diz: “o compasso está no olho”. As proporções são fundamentadas na ótica. Ele dá novo status ao artista. Tem uma extraordinária presença, dialoga com papas, príncipes, de igual para igual.
Michelângelo era de uma religiosidade cristã profunda Ele foi o topo de um percurso histórico da cultura florentina. E da Itália. E do mundo Ocidental.
Mas, sentada diante do David, eu me perguntava, diante dela mesma, se realmente  aquela obra existia, naquele tamanho, naquela grandeza, naquela perfeição. Era uma situação de “me belisquem, por favor".
Angela Weingärtner Becker
Museo dell’Ópera del Duomo, Florença. (parte final)
O empoeirado e velho museu, mais depósito do que outra coisa, dá lugar a um museu moderno, dentro dos cânones atuais de museologia. Recebe  obras da Catedral, do Batistério, do Campanário e outras tantas. É  feito de obras retiradas do complexo arquitetônico do centro de Florença que estão sendo deterioradas pela poluição. Como exemplo, dois magníficos coros (de Luca della Robbia e Donatello) que foram substituídos por outros maiores para o casamento do filho de Cosimo II de Médici, em 1688. Ou quando Francesco de Medici fez desmontar a fachada da Catedral por achá-la antiquada. Outras, retiradas da Catedral  Santa Reparata, esta que foi demolida e deu lugar ao Duomo atual. Do Campanário vieram os 10 painéis de bronze, com temas  bíblicos, feitos por Ghiberti e estão preservados  em contêiners transparentes cheios nitrogênio. Obras originais são substituídas por réplicas por causa da poluição.
Sempre que vejo este ato de preservação, lembro dos 12 Profetas de Aleijadinho, sob sol, chuva e poluição. Recentemente fizeram guerra com produtos químicos aos fungos e liquens que os envelheciam. Mas continua lá, ao ar livre, o maior conjunto estatuário barroco do mundo, e a obra maior de Aleijadinho, que em 1985 virou patrimônio da humanidade. Continuam lá fora no tempo. No MAB, Museu da FAAp, em São Paulo, há réplicas dos profetas. As réplicas estão fora de perigo, sob teto, resguardadas...ai...ai...ai

O Museo dell’Ópera del Duomo é moderno. As peças foram colocadas com requinte, em vitrines de luxo. Cada uma com seu “pedestal” ou “altar”. Quero dizer, estão num espaço digno, sagrado, merecido.
Detalhe da Cantoria, Lucca della Robia, 1433-38, uma série de 10 painéis em mármore com relevos de meninos cantores e dançarinos, com formas graciosas e fluentes. 

Pietà (1548-55) - Michelângelo.

É impressionante este conjunto em forma de triângulo onde o rosto de Nicodemus é o auto-retrato do próprio Michelângelo. Historiadores acham que era destinado ao seu próprio túmulo.

Subo ao  mesanino do museu, onde estão os profetas de Donatello provindos do Campanário. O mais famoso deles, o expressivo, o disforme, o careca Habacuc.Tão moderno, tão eloquente que me impressiona de uma forma especial. Ah esta escultura me “pegava”. Era expressionista, assim como o entendo: uma forma de deformação da imagem com o fim de carregar mais emoção.


Profeta Habacuc - Donatello 1423–1425

Mas o que quase desencadeia a Síndrome de Stendhal é Maria Madalena, também feita por Donatello,  artista do mesmo naipe de Michelângelo. A  estes dois, curvo-me ao pronunciar seus nomes.



Maria Madalena. Escultura em madeira - Donatello,1543

Ele executa a Madalena, em madeira. Esta obra é um mistério para mim. Donatello parcece galgar séculos e chegar ao moderno, disposto a tocar o não-belo dos padrões clássicos. Com coragem de negar toda a beleza física, esculpe uma velha.Rosto fossilizado, é uma velha ascética. Aquela que antes tinha quadris acetinados e sensuais. Agora, esquelética e comovente, é estéril de tudo. Está vestida com seus próprios cabelos (a lenda conta que terminara seus dias numa gruta, como eremita). Sempre a vimos representada na sua condição de prostituta. Colorida, exuberante, sensual. Donatello vê a velhice, a feiúra e o cansaço de Maria Madalena. Humaniza-a até ao último grau.  Ao olhá-la, sente-se pena de nós mesmas, das mulheres, sente-se pena do amor e quando estamos diante dela, não estamos vendo uma escultura. Estamos tocando a própria dor humana.
PS.: uma querida amiga da Áustria me informa agora que desde 1963 o Vaticano retificou o adjetivo (prostituta) atribuído à Madalena.Na verdade ela seria uma mulher rica que patrocinava a causa de Jesus. Bem...quando Donatello a esculpiu, vigorava a velha e conhecida versão.
 Angela Weingärtner Becker
Poema para Galileo
Autor: Antônio Gedeão (pseudônimo) Nasceu em Lisboa, 1906, faleceu em1997. Foi químico, professor de Físico-Química, Pedagogo, investigador de História da Ciência e poeta.





Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.

Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!

Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar - que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação -
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se tivesse tornado num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas - parece-me que estou a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e descrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai Galileo!
Mal sabem os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.

Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto incessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa do quadrado dos tempos.

Florença, um luxo (parte II)
cansada, euforicamente cansada de rodar pela cidade, eu só desejava ter espaço mental, emocional e físico para não sofrer da síndrome de Sthendal. Cantarolei a música de Chico Buarque “Ai, meu amor, para sempre, nunca me conceda descansar”.
Síndrome de Sthendal: uma espécie de colapso dos sentidos (xilique que o escritor francês sentiu em Florença). Da alma vai ao corpo com alucinações e arritmia. Seu nome batizou a síndrome, cientificamente catalogada. A causa era o esplendor de Florença.
Estava eu olhando estes três ícones da cidade.Havia ali uma nova concepção de mundo: o mundo renascentista. A Catedral com sua cúpula, em frente ao Batistério e ao lado, o Campanário.
A Catedral Santa Maria del Fiore, o Batistério e o Campanário. Foto: Arquivo da Casa Editrice.Bonechi
Dedicada à Santa Maria das Flores, a Catedral é famosa por sua cúpula, construída por Filippo Brunelleschi, depois de ganhar o concurso público. Era por concursos que grandes estruturas acabavam nas mãos dos maiores e melhores da época. Foi ele quem conseguiu achar a solução para cobrir o vão de 41,99 m a Igreja.
A arquitetura medieval usava cimbres de madeira para vencer os vãos. Mas numa obra desse porte, com tal método, era impossível. Brunelleschi propõe um sistema construtivo de “casca”, dupla abóboda, utilizando um modelo em escala e de desenhos. Ele  marca a era moderna na arquitetura, quando começa a desmontar o sistema de pensamento medieval, e muda para sempre a maneira de construir as cúpulas das Igrejas. Surgia, então, o projeto, elemento fundamental para a compreensão da Arquitetura Contemporânea. E também rompe com o fazer do arquiteto no canteiro de obras. A partir daí, o que toca ao arquiteto é fazer o projeto e supervisionar a obra.
Interior da Cúpula. Afresco O Juizo Final, de Vasari e Zuccari. Foto: Angela W.Becker.
Parei em baixo da cúpula e olhei para cima. O afresco do Juízo final, pintado por Vasari e Zuccari era esplêndido. Brunelleschi havia concebido sua cúpula sem nenhuma decoração. Ele queria o branco puro. Hoje, há um movimento para voltar ao projeto original. Mas eu (quem sou eu!) não concordo com o branco de Brunelleschi. A beleza da narrativa do Juízo Final é ALGO.
Logo ao lado da Catedral, em perfeito conjunto forrado de mármores verdes, brancos e rosa, temos o Campanário, a torre sineira da Catedral. Giotto o projetou em 1334 e morreu em 37, sem o concluir.
À frente da Catedral está o Batistério di San Giovanni. Erguida no século IV, compõe perfeitamente com o conjunto das duas outras construções. Tem a forma octogonal que alude aos 8 dias em que Cristo, após sua morte, ascendeu aos céus.
O Batistério era construído em separado da Igreja. Antes do batismo, todos eram pagãos e assim proibidos de entrar no recinto sagrado da Igreja. Foto: www.wikipedia.org
Eu percebia, maravilhada, a unidade conseguida pelos mestres italianos nestas três construções. Eles, mesmo rolando muita rivalidade, passavam por cima de seu ego na hora de continuar um trabalho começado por outro. Assim se preservava a harmonia do conjunto.
O filósofo da arquitetura e urbanismo, Alberti (1404-1472) diz, com beleza: “pelo cálculo matemático, pelas proporções, o edifício harmonioso  desperta uma felicidade particular que confirma o poder benfazejo dessas disposições práticas”. Eu podia sentir esta felicidade benfazeja da venustas (beleza), firmitas (solidez), e utilitas (funcionalidade). Os três pilares da arquitetura, que Vitrúvio, já no ano 40 a.C, concebia no seu tratado “De Architectura”.
O Batistério tem a maravilha das maravilhas feita em bronze: suas três portas. Pisano faz a 1ª. As outras são de Ghiberti (que vence o concurso aos 21 anos!)  Brunelleschi, ao perder para o rapazinho Ghiberti, fica  arrasado e vai embora. Nunca mais esculpiu.
Ghiberti tornara-se uma celebridade e recebe a encomenda da porta leste:10 painéis. Usava a nova técnica de perspectiva que dava profundidade às cenas.Michelângelo reconhece  a genialidade e as nomeia  Portas do Paraíso. Como até hoje são chamadas.
São 10 painéis compondo Porta do Paraíso. Este, representa a História de José, Antigo Testamento. Foto: Angela W. Becker.
Se o verdadeiro sentido da Arte é representar um universo maior do que toda a tragédia existencial humana, aqui neste pedaço de Florença, este conceito se concretiza.Lembrei de Borges, escritor argentino: “experiência mística é a idéia de haver pessoas empreendendo lavor tão fino e infinito que coincidem com o universo”.
Angela Weingärtner Becker
Florença, um luxo! Desde San Miniato, uma visão privilegiada
Vou escrever uns três artigos sobre Florença. É lá que temos, até hoje, o metro quadrado mais sofisticado do mundo ocidental. Começo com um plano geral e depois vou particularizando nos pontos mais... dramáticos.

Por um caminho ladeado de ciprestes, entra-se para chegar à Igreja de San Miniato al Monte, um santo que, segundo a lenda, foi decapitado pelas perseguições anticristãs. Depois, carregou sua própria cabeça atravessando o rio Arno e voltou para sua solidão de eremita. É o ponto mais alto de Florença.
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O ar ondulava com vozes de canto gregoriano dos monges, chegamos na hora do Angelus. 
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No topo da colina, a Igreja, escura por dentro, fulgurava seus mármores verdes e brancos ao último sol do dia.
Entrando, o chão marchetado em mármores com os signos do zodíaco. Isto ainda é reminiscência da transição da era pagã/cristã. À direita, dezenas de turíbulos desciam do alto, por correntes de prata, refletindo a luz vermelha das lamparinas. Meu coração disparou. Ai, como gosto de turíbulos, esta delicada peça litúrgica. Sempre quero “levá-los” comigo. Uma amiga desejava os rosados e rechonchudos MeninosJesus, dos presépios. Eu quero os turíbulos para, debaixo de suas pequenas luzes, tomar vinho cor de rubi e ver fulgurar os vermelhos, das sombras rendadas nas paredes. Ah, esta Igreja com esplêndidos mosaicos do século XII, tudo isto olhado ao som de música sacra dava uma atmosfera de ante-sala do paraíso. Não foi à toa que, durante o cerco de Florença em 1530, Michelângelo mandou colocar colchões para proteger a Igreja.
Ponte Vecchio sobre o Rio Arno

Saindo da Igreja vejo o cemitério de São Miniato onde, descobri, está enterrado o criador de Pinóquio, Collodi, que faleceu em 1890. Sem dúvida, a criatura engoliu o criador. Em todo o mundo se conhece a história de Gepeto e seu boneco, cujo nariz cresce na mentira. Eu mesma havia comprado um pequeno pinóquio, oferecido em cada tenda de Florença. Agora entendia o porquê da  proliferação de pinóquios.
E a tarde caía sobre o berço do Renascimento. Lá em baixo, a cúpula de Brunelleschi dominava a cidade. O Rio Arno, a ponte mais antiga, Ponte Vecchio (1345) cheia de lojinhas charmosas que vendiam jóias, o melhor artesanato, e o melhor sorvete do mundo. A vista panorâmica abraça o coração de Florença: Santa Croce, Palazzo Vecchio, il Bargello, Il Campanile e, mais além, as colinas do norte.
Nas escadas da piazzetta, Michelângelo; logo abaixo da Igreja, pessoas de todo o mundo desfrutavam o por do sol no mirante mais bonito da cidade. Todos banhados em fino ouro. Lindo demais.
A cidade de Florença traz infindáveis nomes das Artes, como Leonardo da Vinci, Giotto, Michelângelo, Ghiberti, Brunelleschi, Masaccio, Botticceli, Dante Alighieri, Maquiavel e tantos outros. Poucos lugares do mundo têm uma reunião tão grande de obras de arte. E uma configuração especialíssima dos astros trouxe os maiores gênios que a humanidade já conheceu - o mais incrível: durante o mesmo período histórico.
Isto ocorreu no seio da família Medici, que deram uma “mãozinha” aos astros, é preciso que se diga. Riquíssimos banqueiros, foram políticos, clérigos e nobres. Atingiram o seu apogeu entre os séculos XV e XVII. Eram governantes não oficiais de Florença. Mecenas, colecionadores de arte cujas obras depois formaram  a magnífica galeria dos Uffizi. Traziam os artistas para junto de si, a comer em sua mesa. Michelângelo frequentava a casa dos Medicis como se filho fosse.
Já pensaram o que era aquela época? Estar em Florença, com a mais fina flor das sensibilidades, desde a Grécia Antiga? .
Florença sempre foi sensível sobretudo ao aspecto helênico, clássico. Diferentemente de Veneza que criou estilo próprio. A cidade foi o novo berço da cultura italiana e européia. Foi a cidade-farol do Humanismo e do Renascimento. Para ela, escolho a palavra
Esplendor!                                                                        

   Angela Weingärtner Becker

A Arte Brasileira Contemporânea


“Chegou a hora e a vez do Brasil no exterior” é o que estamos a ouvir a todo o momento. Isto vale também para a Arte. Tunga,  Beatriz Milhazes, Vik Muniz, Antônio Dias, Os Gêmeos, Bruno9Li, e Irmãos Campana, estão em alta lá fora. O Brasil se consolida no cenário internacional como pólo criativo e adentra em redutos consagrados, americanos e europeus.
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Depois da segunda guerra, o pólo das artes migrou da Europa (principalmente Paris) aos EUA, NY. O novo chegou com a Op Art  que antecedeu Andy Warhol e Roy Liechtenstein. Estes, plenamente comerciais, acessíveis e massificadores. Daí à street art, foi um pulo. Tecnologias, experimentalismo, estranhamento e acima de tudo liberdade, passaram a fazer parte da arte já em vésperas do século XXI. A Arte saída da  parede ou pedestal veio envolver o expectador de forma tridimensional e fazer parte, lado a lado, com obras tradicionais.

Em 2010 um periódico inglês que registra as visitas aos museus, (Louvre 8,5 milhões de visitantes, British Museum, 5,8 milhões e Metropolitan Museum of Art, 5,2 milhões) mediu, entre outros, a frequência dos brasileiros nessas entidades. Nós aparecemos de Reina Sofia, Tate Modern e o Guggenheim. O crédito é dado às instituições do Banco do Brasil de SP, Rio e Brasília, MASP e Pinacoteca do Estado.
Fonte: Revista Trousseau, ano I



Antônio José de Barros de Carvalho e Melo Mourão, conhecido como Tunga, nascido em Palmares, em 1952, é escultor, desenhista e ator de performance artística.


Beatriz Milhazes, (Rio de Janeiro1960) é pintora, gravadora e ilustradora. Faz mandalas coloridas inspiradas nas cores do carnaval, na natureza brasileira.

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Vik Muniz (São Paulo, 20 de dezembro de 1961) artista plástico em NY, faz experimentos com novas mídias e materiais como açúcar mascavo, arames, mostarda, chocolate, fumaça.

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Bruno9Li (Bruno Novelli, 1980, Porto Alegre) do grafite passou a técnicas mais intimistas. Mitologia, Ficção, Metafísica e os grandes mestres o inspiram.
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Irmãos Campana (Humberto, Rio Claro, 1953, e Fernando, Brotas, 1961. Design-Arte. Trabalham com elementos do cotidiano ou sem valor, que transformam em peças artísticas, com uma linguagem única e de uso possível.
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Angela Weingärtner Becker

A Louça
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Hoje comprei louça branca, simples e reta
para ser colocada sobre toalha clara, sem bordado sequer.
A louça é justa como um copo d’água.
Simples, como café com leite, arroz com feijão.
É louça para apetite certo.
Uma “louça em si”
para um professor de filosofia,
um professor de latim,
ou de geometria.
Uma louça que parece ter nascido da terra
 como um nabo branco,
ou pescada na água
como um peixe liso e exato.

Angela Weingärtner Becker


Antoni Gaudí - Parque Güell e Sagrada Família


A obra de Gaudí: de tão perplexa, não sabia se gostava daquele estranho arquiteto que parecia fazer tudo de areia e ossos. Porém alguma coisa subterrânea em mim, identificava-se com seu estranho cenário. Estranho era pouco. Sua obra me fazia monja ou bruxa. Não sabia bem se o colocava na idade média ou num filme hollywoodiano.
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Estávamos indo, em quatro pessoas, ao Parque Güell, declarado Patrimônio Mundial da UNESCO, em 1984. O dia estava ensolarado como costuma ser em Barcelona. Subíamos o morro em degraus e rampas, alternados com escadas rolantes até o cimo. Lá toda a cidade podia ser avistada. Abaixo, o enorme jardim.
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Eusebi Güell era um mecenas, industrial bem sucedido que abria sua casa aos artistas. O Parque foi construído em suas terras, entre 1900 e 1914.

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Parque Güell-Foto Angela W. Becker

Neste local, Gaudí experimentou suas famosas cerâmicas quebradas e coladas, de aspecto mourisco, muito colorido. Grandes árvores, jardins, caminhos de terra, pérgolas, grutas, escadarias constituíam o Parque. Um banco de pedra gigantesco, decorado com cerâmicas quebradas, circunda uma arena de terra. Debaixo dela, intrincado complexo de condutos recolhe águas pluviais. Gaudí era extremamente prático. Sob suas formas orgânicas, que parecem nascer do chão, há sempre a funcionalidade. O clássico é totalmente ausente. Dá lugar ao homem que filtra em si o gótico e o bizantino. Mas acima de tudo, cria as suas próprias regras olhando a natureza. “A natureza é um livro para se ler”, dizia. Para ele, estrutura e decoração eram uma coisa só. Como “en la naturaleza”..
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Cerâmicas quebradas e coladas. Característica de Gaudí. Foto Angela W. Becker
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Caminha-se muito, subindo e descendo, no parque. Ao final, no plano, o almoço merecido, debaixo de árvores, num delicioso restaurante árabe. Descanso dos sentidos. Lorca me sussurra sua poesia: “um agitar de folhas e de almas”. Gaudí vai direto na veia. Pântanos, subterrâneos, esqueletos. Era bom aliviar a mente ali, fixar o vazio para depois ter fôlego no Templo Expiatório da Sagrada Família. Estava com muita expectativa. Não o conhecia por dentro. Eu brigava para me entregar, mas desta vez sentia que Gaudí havia me seduzido.
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Colunas inclinadas, nova matemática do mestre foto Angela W. Becker
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Dentro da Igreja, operários trabalhavam entre andaimes e guindastes. Imaginei que deviam ser artesãos raros. Dignos de Gaudí, ele mesmo um grande artesão. Eu nunca vira a construção de uma Catedral. É grandioso. Seu início foi em 1882. Gaudí trabalha por 40 anos, até ser atropelado por um bonde, diante da Igreja que contemplava. Taxistas que passavam no local se recusaram a levá-lo a um hospital, pensando tratar-se de um mendigo. Ele não ligava a mínima, para sua aparência. Ahn, cruel mundo esse, das aparências...
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Dentro da Igreja, as colunas eram joelhos, fêmur, tíbias, músculos, tendões. Tudo isso misturado com flores e bichos. Estranhei: colunas inclinadas?! Diz Gaudí: “Perguntaram-me porque fazia colunas inclinadas. Disse-lhes que pela mesma razão que o caminhante cansado, quando para, se apoia no bastão inclinado, porque em posição vertical não descansaria”. A geometria não-euclidiana que ele usava, por muito tempo fora um mistério. Hoje já o decifram, com ajuda de computadores.
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Extremamente católico, está em curso no Vaticano o seu processo de beatificação. Para o Arcebispo de Barcelona, o cardeal Martinez Sistach, “Gaudí era um grande cristão de espiritualidade franciscana, amor e contemplação das belezas naturais, imagens do Criador”. Para mim, Gaudí é um artista absolutamente original, matemático, genial. Me dá medo e deslumbramento.
  

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.Angela Weingärtner Becker
 

Frida Kahlo


Magdalena Carmen FRIDA KAHLO Calderón  (1907-1954)


Pela imensa profundidade desta mulher, por sua capacidade de expressar a pluralidade, por mobilizar multidões, Frida Kahlo não tem, até os dias de hoje, outra pintora que a ela se compare. Indago este tema “Frida” como se indagasse um poço profundo, desconhecido, escuro.


Esposa do muralista Diego Rivera com quem vive um amor tumultuado, ela foi uma pintora de aspecto surrealista, porém, como ela mesmo dizia: "eles dizem que minha arte é surrealista, mas como ser, se tudo o que mostro é minha própria vida?".



Atribulada vida. Quando criança, contraiu poliomielite que atrofiou sua perna direita. Aos 18 anos, sofre um acidente de ônibus onde é retirada das ferragens "entre purpurinas, pó de ouro e sangue" (estava no acidente um restaurador de igreja carregando estes materiais). Resultado: 35 cirurgias e a amputação posterior de uma perna. Depois do acidente, Frida recebe de sua mãe, material de pintura. Olhava para si mesma, na cama, através de um espelho pendurado no teto e se autorretratava.

 Começa a pintar autorretratos em um estilo muito pessoal.Cadeiras de roda, colete ortopédico, nada disso impede a força de Frida de atuar em manifestos, passeatas, reuniões comunistas e feministas.Teve momentos de grande liberdade. Muitas vezes expressava-se com palavrões ditos sonoramente com sua voz profunda.



Frida levou uma vida sexual livre e intensa, apesar das cirurgias (em média uma por ano!). Seus autorretratos, quase todos pintados em seu leito de infindáveis convalescências, eram caracterizados pela sobrancelha unida e vestes típcas da tradição mexicana. Com seus cabelos ornamentados (conhecidos como "tlacoayal") ela comove e surpreende. Sua pintura é um relato de seu grande amor por Diego, seus abortos, sua feminilidade ferida, suas crenças políticas, sua pátria, na invocação da civilização asteca e sentimento nacionalista. Pouco antes de morrer, ela comparece à sua exposição individual, levada por maca. E, surpreendendo a todos, brindava. Seu rosto esmaecido pela dor já prenunciava a morte iminente e precoce aos 47 anos. 



“The Frame” - (1938). É o primeiro trabalho de uma artista mexicana do século XX a ser comprado pelo Museu do Louvre.
 

 
“Raízes” - foi comprado em 2006 em NY e chegou ao topo do valor jamais alcançado por uma pintora sulamericana. O record anterior também era dela. E só depois teremos Rivera, Tamoyo e Botero.


Angela Weingärtner Becker