O David de Michelângelo
Entrei na Galleria dell’Accademia, Firenze, em raro momento de calma. Pude sentar diante do David, de Michelângelo. Apreciá-lo demoradamente. Tatear com meus olhos cada pedaço da obra, os pés, as veias das mãos, o pescoço forte, a sua nudez.
Eu  tivera experiência semelhante com Moisés, em Roma. Quando cheguei, o padre encarregado estava fechando a Igreja. Pedi para entrar: “no, no, chiuso” não, fechado, disse, sem mesmo me olhar.  Em seguida, abanando a mão, resmungou “ah va, va,va!”  E fui. O prazer de estar sozinha com aquela obra-prima foi único. Quase um fetiche. Pude sentir a majestade, a imponência do líder. Ao concluir a obra, o próprio Michelângelo admira-se de sua perfeição e diz: “Perché non parli?” Por que não falas? 

                                                         

Detalhe de David

Agora eu estava diante de David. A escultura é do tipo que impõe silêncio na sala. Mesmo com pouca gente naquela hora, estava mergulhado num mundo feito de silêncio e formas. A estátua é uma autoridade em si. Pelos 5,17m, pela perfeição, pelo realismo anatômico. Impressionante. Não há a menor dúvida de que estamos diante de algo muito, muito grandioso.
Michelângelo encontrou um enorme bloco de mármore de Carrara, abandonado ao lado de uma igreja. De 1501 a 1503, se fecha numa casa perto da catedral e esculpe o David. Reinventa o tema do “nu heróico”. E o nu passa a ser a sua especialidade.
Ele não teve um mestre para a escultura. Quando perguntavam quem foi seu mestre, ele dizia que seu talento viera através do leite da esposa do mestre de cantaria, que o amamentara. Uma maneira brincalhona de dizer que ninguém lhe ensinara.
A presença de Michelângelo marca todo um século. Ele sempre se considerou escultor e não pintor. Ele diz “a escultura é a lanterna da pintura” (tem rixa intelectual com Leonardo da Vinci que defende a pintura como arte maior). Leonardo dizia que a escultura era  uma arte manual, como o fazer de um pedreiro, um padeiro. “O pintor sabe fazer a tridimensionalidade no plano. O desenho é “cosa mentale”, dizia.
Michelangelo usa a “licença”, a maneira de fazer. Graças a ele o artista adquiria esta liberdade. Ele se torna um modelo a ser imitado.
No texto de Vasari diz: “Michelângelo é filho de Florença, discípulo de Giotto , filho dos Médicis”. Diz ainda: “a configuração das constelações fez com que Deus fizesse Michelângelo nascer em Florença”.
Tanto em Vasari como em Condivi, biógrafos do artista dizem que ele fora criado por Deus. Cristo e Michelângelo são enviados por Deus. O próprio Michelângelo quis que assim fosse considerado.
Michelângelo nunca mede seus esboços, é tudo no “olho”. Ele diz: “o compasso está no olho”. As proporções são fundamentadas na ótica. Ele dá novo status ao artista. Tem uma extraordinária presença, dialoga com papas, príncipes, de igual para igual.
Michelângelo era de uma religiosidade cristã profunda Ele foi o topo de um percurso histórico da cultura florentina. E da Itália. E do mundo Ocidental.
Mas, sentada diante do David, eu me perguntava, diante dela mesma, se realmente  aquela obra existia, naquele tamanho, naquela grandeza, naquela perfeição. Era uma situação de “me belisquem, por favor".
Angela Weingärtner Becker

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