Egon Schiele



"Duas mulheres"

"Conversas"


"Wally com casaco vermelho"

"Autorretrato" 1912. Museu Lasar Segall, SP, Brasil

 

"Quando conheci a obra do pintor austríaco Egon Schiele, foi como se um raio tivesse caído sobre minha cabeça". Assim falou o escritor Vargas Llosa. E eu assino em baixo. Sua eloquência nos causa impacto.

O artista que viveu entre 1890 e 1918 discute, com seu estilo expressivo e visceral, a sexualidade sem subterfúgios, a transitoriedade da vida, o vazio existencial e a espiritualidade. Schiele, de vida tão curta (com 28 anos morre de gripe espanhola), teve uma vida atormentada, e seu erotismo inclusive o levou à prisão, acusado de pedofilia, pois muitas vezes usou como modelos vivos, meninas de menor idade.

Aluno de Klimt, que o influenciou, sem dúvida, mas de quem logo se afasta e ganha seu próprio estilo pesado e inconfundível, de mulheres com poses inusitadas, de cores fortes (muito ocre com cores primárias) e grafismo veloz.

Egon Schiele é um turbilhão que faz aquele milagre que, na minha opinião, é teste certo para uma obra de arte: nos catapulta para dentro da obra. Há uma intensidade pouco vista em outros pintores. Amoral, erótico, doído, intenso. Foi talvez o pintor que mais autorretratos fez, todos impactantes. Um exemplo é o poster inspirado na Última Ceia, com o seu retrato no lugar de Cristo.

Quando se vê a obra deste artista, intimamente sabemos que estamos diante de um dos maiores expressionistas da história da Arte. Ninguém nos precisa dizer. Egon Schiele é um nome que procuro sempre em museus que visito. Não é fácil encontrar. E que surpresa quando fico sabendo que no Museu Lasar Segall encontra-se a única obra de Schiele do Brasil (e quiçá da América Latina), aquarela e carvão sobre papel de embrulho, de 1912, autenticada e certificada em NY. Ali Schiele exibe-se nu e mira o visitante com um olhar intenso. Corpo magro, costelas à mostra.É Egon Schiele no auge de seu expressionismo corporal, sua marca registrada.



Angela Weingärtner Becker
                                  

Pádua e Giotto

De Milão à Pádua, o trem nos leva, vendo a Itália passar na janela.
Lá experimentaria a melhor hospitalidade que se pode sonhar, em casa de simpáticos padovenses e tanto a contar. Entre tantas histórias, a da dona da casa que nasceu e cresceu na mesma casa do filósofo, matemático e astrônomo Galileu Galilei. Raro momento de sentir-se dentro da História Universal! Cheguei a ouvir Eppur si muove!"- contudo, ela se move - dito à inquisição. Galileu referia-se à Terra, considerada fixa, no universo.
Fomos visitar a Universidade de Pádua, fundada em 1222, onde Galileu deu aulas e William Harvey descobriu a circulação do sangue. Além de Helena Piscopia, primeira mulher a receber o título de doutora (1678).

“Teatro anatômico” da Universidade de Pádua. Incrível construção de 7 andares 
de madeira. Intacta até hoje.
 
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Conta a lenda que no “teatro anatômico” da Universidade, faziam dissecações de dúzias de corpos, fora dos dois dias ao ano, permitidos pela Igreja. Quando a inquisição dava o flagrante, a mesa se abria e o cadáver caía num poço, lá em baixo.
Na saída, vimos uma colação de grau, acontecendo na escada mesmo, do prédio. Formandos, professores, familiares, uma coroa de louros, um flash fotográfico enquanto cantavam em coro:" Dottore, dottore, dottore del buco del culo". Que muito mal traduzido seria “doutor de meia-tigela”. Aqui temos os trotes de entrada na universidade, lá fazem as brincadeiras de encerramento.
Capelle degli Scrovegni 
(fonte: wikipédia)

A meta, no entanto, era ver Giotto na Cappela degli Scrovegni. Este pintor liberou a linguagem pictórica da tradição medieval. Deu um largo passo em direção à Renascença.
Conta-se que Cimabue, grande mestre da pintura do século XIII, em viagem pelos arredores de Florença, vê um pastor de seus 13 anos de idade, desenhando numa pedra. Encantado com o que viu, leva-o para seu atelier, torna-o aluno de pintura. Logo é superado pelo discípulo. O mestre era ainda rígido e convencional, de acordo com a tradição bizantina. Giotto tem uma mão ousada, dramática. Cria volumes e preciosos efeitos de cor. Extraordinária força criativa e naturalismo, levam-no ao ápice da grandeza no ofício e plenamente reconhecido em sua época. É chamado para pintar por toda a Itália, inclusive à Pádua. (1303-1305). Lá, trabalha na Basílica de Santo Antônio e, a pedido de Enrico Scrovegni, faz a superfície inteira do interior da capela. Capela esta que seria ofertada a Deus em troca do perdão ao pai usurário...

Cappelle degli Scrovegni
(
fonte
http://www.tecnologiaericerca.com/)

Afrescos de Giotto (1303-1305). Episódios da Vida da Virgem e de Cristo. 
( fonte: wikipédia)

    
A Capela, totalmente restaurada, possui  a obra melhor conservada de Giotto, uma preciosidade que salta aos olhos logo ao entrar.
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Vê-se um filme explicativo, e depois a visita  que nos envolve. Teto estrelado, de um azul “só visto em asa de borboleta” me acode uma frase de Guimarães Rosa. Paredes com a história da Virgem, doces cores, cenas domésticas. Nuances coloridas dão volume e extraordinária dramaticidade. No afresco “A prisão de Cristo” podemos ver o abraço que trai o mestre. Há um grande tumulto, as figuras falam em desespero e estupefação. São mares nunca dantes navegados em pintura. Era o início da Renascença.
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Saimos de lá com a certeza íntima de ter visto uma jóia da pintura universal.
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Pádua, cidade que eu escolheria para morar. Pequena e grande, me enchia de magia o coração enquanto passávamos, à noite, pelo Observatório de Galileu. A abóboda celeste imensa e estrelada, estrelada. Giotto copiou-a, sempre que possível.
Angela Weingärtner Becker
          




O Burguês, segundo Sartre
conforme o livro "O século de Sartre" de Bernard-Henri  Lévy (ed. Nova Fronteira)

Burguês é aquele que acredita que existe um “papel”e que encena a comédia do seu próprio papel, à custa dessa incessante e maravilhosa invenção de si. É o estado de espírito daquele que acredita que este papel existe, que ele tem um sentido, que o mundo é feito de um repertório de máscaras, bem ajustadas, em concordância: é alguém que “crê no mundo”, fecha-se às experiências da contingência e da náusea e vive na ilusão de que a sociedade é uma bela e boa máquina da qual ele seria um dos pistons e passará a maior parte de seu tempo na manutenção de seu piston.

Antes de sair de um dicionário das virtudes e de se aplicar, por exemplo, a um torturador, um assassino, um fascista no sentido corrente, um pervertido, é uma categoria metafísica que designa um cara q não duvida de nada e sobretudo de sua própria existenciazinha nessa grande e vasta sociedade, em que encontrou seu papel e seu lugar, acha natural que haja Ser em vez de Nada e que por causa disso, por causa deste não-espanto primeiro, pela falta de questionamento e de senso filosófico, não vê por que se inquietar com o estilo da sociedade em que vive, nem com a natureza do regime que a governa, nem finalmente com a posição que ocupa nela. É alguém que vê o mundo como uma ordem e sua posição neste mundo como uma absoluta necessidade e vai considerar seus privilégios como de fato privilégios de direito e esmagar, muito logicamente, quem quer que pretenda atacar este direito.

O que é mesmo um burguês? Não exatamente uma categoria política, nem uma classe social. É um modo de instalação no ser. É a parte que em cada homem conjuga a gravidade do espírito de seriedade e a ausência da dúvida. É burguês aquele que, achando necessária e legítima a ordem presente das coisas, dedica-se a traçar a dinastia dessa ordem. É burguês aquele que procura fundar sua certeza de que “bem antes de seu nascimento” estava o “seu lugar marcado, ao sol” de que “o mundo o esperava”, senão desde sempre, pelo menos há algumas gerações. É o lado “herdeiro” do burguês. É esse insuportável laço sucessorial.

É burguês aquele que nunca duvidando da ordem instituída das coisas, nunca hesitando, por um segundo sequer, quanto a sua tenebrosa e profunda legitimidade, dedica-se a perenizá-la. Garantido pela certeza ser o mundo essa bela e boa máquina em que ele tem seu lugar bem marcado, vai naturalmente escorar-se para que nada mude e que seja conjurado qualquer eventual surgimento de alteralidade que possa vir a tudo revirar. É o lado “conservador” dos burgueses.

É tendência deles perpetuar o que existe e, se possível, eternizá-lo. É burguês aquele que mesmo trabalhador ou proletário, sente-se enraizado, não apenas na sociedade, mas no mundo, não somente no mundo, mas no Ser. É burguesa a visão de um ser pleno, opaco, sem falha nem brecha, em que se teria, qualquer que seja seu estatuto social. “É burguês aquele que se dá o tempo de olhar bem o seu interior, para “o maciço granítico de seus gostos”. Tipo de existência do rochedo, a consistência, a inércia, a opacidade do ser-no-meio-do-mundo. Este que não tem a menor dúvida da natureza de seus gostos assim como a qualidade de sua inscrição neste mundo e pode responder com bom timbre “eis os meus gostos, eis o que sou, isto sou eu, eu sou o fulano de tal por inteiro”.

Angela Weingärtner Becker
Gustave Doré (Dante-Inferno)

Espiei o terror do Congresso

Com o manto da noite enrolado debaixo do braço, saí em busca da cidade do coração do Brasil.

Não que desejava ver aquele espetáculo que já mugia há dois séculos diante da minha TV. É que estava entre os que não acreditam que imagens tão nojentas são capazes de passar por um fio e vir desabrochar em flor de náusea dentro da minha casa.Tive de me dar o trabalho de ir lá testemunhar a doença do planalto.

Caminhei muito até a hora de desenrolar a noite. Vi que estrelas ainda luziam e na lua, nadava um peixinho esperto. Para dormir, coloquei na voz, por um momento, um menininho inocente para assobiar.

O dia chegou cheio de espinhos e urtigas. As árvores do caminho teciam um vento apocalíptico. No entanto, cheguei a ver um burrico carregado de girassóis.

Foi agradável caminhar, mesmo com a areia até a cintura e a noite pesando no meu braço. Uma câimbra me contorcia e retorcia os músculos. Era provavelmente o peso e o calor extenuante que faziam riozinhos de suor descerem pelas minhas costas. A cidade, ao longe ainda adormecia em berço esplêndido.

Logo senti uma lufada de fedores pestilentos. De longe já se via o senado. Pelo caminho, mil carpinteiros faziam ataúdes de madeira nobre da Amazônia. Eram destinados aos representantes do povo que pensavam sair impunes da dura gadanha dos atentos olhares. Que paisagem!

A catedral de bacias viradas, já se podia avistar. Um vento louco e repentino me derrubou com um tapa certeiro. Logo me pus, eu e o lago Paranoá, de pé, outra vez. Subi com dificuldade o congresso Nacional. Afinal sabemos que subir numa grande bacia virada, com a noite enrolada a um ombro, não é nada fácil. O pensamento seco, os ossos fraquejando, chacoalhavam um samba fora de hora, ahn, nãão! Não era fácil.

O advento do inferno se aproximava. Sub-almas rondavam e rosnavam. No topo da grande bacia emborcada, olhei através da gosma do molusco gigante: não era o inferno de Dante, era o Congresso Nacional.

Lá grasnavam os representantes do povo, todos com larvas nas palavras.Todos com tentáculos nas proparoxítonas e punhais nas oxítonas. Como doía ouvi-los! Alguns cochilavam desinteressados.

Havia um, em especial, que tinha empáfia na voz, e um bigode que começava no norte e se estendia ao sul do Brasil. Ele falava cheio de baba, bobó e bobeira senil. Este homem velho e gasto tinha o aspecto de ter vindo do pó. Falava rimando: "maçãs com louçãs" "parente com decente". Ah, doía demais. Para os nojos enxugar, trouxe comigo três lenços pretos como asas de morcegos. Assim devia ser.

Olhei para baixo, do lado de fora do grande molusco. Um velho deus silvestre dava frutas às crianças. Uma moça dourada banhava-se num dos tantos espelhos de água. Uma estátua cegava-se com meia dúzia de vendas e sua balança pendia, caída para um lado. E ria, ria, ria!

Os fedores de doença estavam insuportáveis no calor daquela tarde esturricada, forjada em bigorna de sol.

Às doze em ponto, um assessor, saído do carpete azul, galopava pelos melancólicos corredores espalhando documentos falsos, boletins inúteis e inscrições para novos concursos, como se o pessoalzinho que mamava ali fosse insuficiente.

E os ataúdes, que levarão os representantes do povo, esperam. Ninguém sabe bem o quê. Alguns eram abaulados para caberem as panças dos gastadores de alfabeto.

Ahnn....... eu já tinha visto tudo que precisava ver. Desde as sonolentas expressões bovinas até os olhos vivos das raposas.

Desci.
O céu tinha nuvens, as mais fofas que se pode imaginar: rabos de galo, carneirinhos, cirrus, cúmulos, nimbus, stratus.

Com um calafrio escarlate abri caminho entre pequenas pombinhas de monumentos. Algumas claudicavam com pequeninas muletas.

A noite pesava, e a troquei de ombro para descansar. Foi então que vi cair uma semente de congressista e me apressei a esmagá-la. Aquela terra era fértil demais.

Angela Weingärtner Becker
PS.: Li Lorca, de um gole só. Que ele me perdoe pela influência.


Milão e Il Duomo
Rumamos a Milão, onde o objetivo maior seria ver A Santa Ceia, de Leonardo da Vinci.
Milão é, talvez, a mais rica cidade da Itália. Uma zona industrial de vanguarda, fazendo da Feira Milano, o maior complexo de feiras e exposições do mundo. Junto com Paris é uma das capitais mundiais do design, da moda. Dita o ritmo vertiginoso das últimas tendências. Que sofisticação nas ruas, nas pessoas! Observei um rapaz que falava ao celular. Malha de caxemira jogada ao ombro, displicente, elegante. Mudava de posição, e cada uma delas, era um Armani perfeito. Havia muitos assim. E moças também, que internalizaram, naturalmente, as esculturas que viam desde sempre.

 Galleria Vittorio Emanuele II, na Praça Del Duomo. É o primeiro “shopping” construído. Talvez a inspiração de todos eles (concluído em 1877).
Mas o que interessava lá, era o convento anexo da Igreja de Santa Maria de delle Grazie. Ali está a Santa Ceia. O taxi que nos trouxera do aeroporto Malpensa, deixou-nos num hotel muito bem localizado. Centro de Milão, perto da Catedral para onde convergiam todas as ruas. Deixar as bagagens e checar a visita a Leonardo, pois não conseguimos fazê-lo de Barcelona. Nem pelo site, nem por telefone.
Ligamos ao convento: não havia a menor possibilidade de visita. Tristeza. Mesmo assim fomos ao local, em horas mortas do domingo, tentar “chorar” um ingresso, uma desistência, quem sabe. Impossível. Restava apenas um bilhete para o mês seguinte. Por acaso havia interesse? Interesse havia. Não havia o tempo. Leonardo ficaria para a próxima vez. Dor. Leonardo me parecia fisiologicamente inadiável.

Igreja Santa Maria Delle Grazie. Leonardo pinta o afresco da Última Ceia, no convento dominicano, junto à Igreja     
Última Ceia, 1490. Sete restaurações, sendo que a última durou 20 anos (terminada em 1959). Leonardo da Vinci pintou o afresco à têmpera e ovo
Deste famoso afresco, dizem os historiadores de arte, só uma “sombra” do original, ainda se conserva. Conta-se que soldados, na segunda guerra, fizeram do rosto de Jesus alvo para pontaria. Aliás, há lendas e lendas sobre a figura de Leonardo. Talvez a grande afluência ao local se deva à literatura e filmes que ultimamente foram produzidos sobre o gênio. Não era meu caso.  Gostaria tanto de ver a doce figura de João como também o rosto perverso de Judas, procurado por Leonardo, anos e anos, entre assassinos, para encarnar (segundo Giorgio Vasari) “a perfídia e desumanidade”.  Mas não dava para chorar sobre o leite derramado. Restava muita coisa ainda para ver. E o tempo “rugia”.

 Il Duomo, Catedral de Milão. Centenas de pináculos “efervescentes”
Voltamos ao centro a pé, num dia maravilhoso. Logo avistamos as agulhas da catedral de Milão, Il Duomo, como o chamam. Uma visão inacreditável.  Estilo gótico francês flamejante parecia ter caído do céu. Imaginei um deus, em pessoa, largando num lago, um gigantesco comprimido efervescente, cujas bolhas de ar cristalizaram-se em centenas de torres brancas multiplicadas. Sob o sol, cantava no ar o requinte, a leveza.

Agitada história da Catedral, onde todos os arquitetos milaneses do Renascimento intervêm com eruditas discussões, para erigir um santuário sem precedentes. Mark Twain dissera da catedral “Tão grande, tão solene, tão vasta! E tão delicada, arejada, graciosa! Um mundo de sólidos sem peso parece um delírio de trabalho no gelo que pode desaparecer com um suspiro”. Dizem que é a segunda catedral em grandeza, apenas superada por São Pedro, em Roma. E ele continua: “Não consigo entender como é que pode ser segunda a qualquer coisa feita por mãos humanas”.
Castello Sforzesco
Saindo do Duomo, em linha quase reta, chega-se ao Castelo Sforzesco. Escuro, robusto, linhas retas, um forte. No imenso gramado, pessoas sentadas, recostadas. Sob a luz amarela do fim da tarde, deitei-me. Deste ponto de vista, o pesado castelo me esmagava. Fechei os olhos para sua dureza. Vi a catedral branca e vaporosa pairar em minha frente. Límpida, fresca, música tocada ao piano. Eram seis horas da tarde, hora da Ave Maria.
Angela Weingärtner Becker