Gustave Doré (Dante-Inferno)
Espiei o terror do Congresso
Caminhei muito até a hora de desenrolar a noite. Vi que estrelas ainda luziam e na lua, nadava um peixinho esperto. Para dormir, coloquei na voz, por um momento, um menininho inocente para assobiar.
Com o manto da noite enrolado debaixo do braço, saí em busca da cidade do coração do Brasil.
Não que desejava ver aquele espetáculo que já mugia há dois séculos diante da minha TV. É que estava entre os que não acreditam que imagens tão nojentas são capazes de passar por um fio e vir desabrochar em flor de náusea dentro da minha casa.Tive de me dar o trabalho de ir lá testemunhar a doença do planalto.
Não que desejava ver aquele espetáculo que já mugia há dois séculos diante da minha TV. É que estava entre os que não acreditam que imagens tão nojentas são capazes de passar por um fio e vir desabrochar em flor de náusea dentro da minha casa.Tive de me dar o trabalho de ir lá testemunhar a doença do planalto.
Caminhei muito até a hora de desenrolar a noite. Vi que estrelas ainda luziam e na lua, nadava um peixinho esperto. Para dormir, coloquei na voz, por um momento, um menininho inocente para assobiar.
O dia chegou cheio de espinhos e urtigas. As árvores do caminho teciam um vento apocalíptico. No entanto, cheguei a ver um burrico carregado de girassóis.
Foi agradável caminhar, mesmo com a areia até a cintura e a noite pesando no meu braço. Uma câimbra me contorcia e retorcia os músculos. Era provavelmente o peso e o calor extenuante que faziam riozinhos de suor descerem pelas minhas costas. A cidade, ao longe ainda adormecia em berço esplêndido.
Foi agradável caminhar, mesmo com a areia até a cintura e a noite pesando no meu braço. Uma câimbra me contorcia e retorcia os músculos. Era provavelmente o peso e o calor extenuante que faziam riozinhos de suor descerem pelas minhas costas. A cidade, ao longe ainda adormecia em berço esplêndido.
Logo senti uma lufada de fedores pestilentos. De longe já se via o senado. Pelo caminho, mil carpinteiros faziam ataúdes de madeira nobre da Amazônia. Eram destinados aos representantes do povo que pensavam sair impunes da dura gadanha dos atentos olhares. Que paisagem!
A catedral de bacias viradas, já se podia avistar. Um vento louco e repentino me derrubou com um tapa certeiro. Logo me pus, eu e o lago Paranoá, de pé, outra vez. Subi com dificuldade o congresso Nacional. Afinal sabemos que subir numa grande bacia virada, com a noite enrolada a um ombro, não é nada fácil. O pensamento seco, os ossos fraquejando, chacoalhavam um samba fora de hora, ahn, nãão! Não era fácil.
O advento do inferno se aproximava. Sub-almas rondavam e rosnavam. No topo da grande bacia emborcada, olhei através da gosma do molusco gigante: não era o inferno de Dante, era o Congresso Nacional.
Lá grasnavam os representantes do povo, todos com larvas nas palavras.Todos com tentáculos nas proparoxítonas e punhais nas oxítonas. Como doía ouvi-los! Alguns cochilavam desinteressados.
Havia um, em especial, que tinha empáfia na voz, e um bigode que começava no norte e se estendia ao sul do Brasil. Ele falava cheio de baba, bobó e bobeira senil. Este homem velho e gasto tinha o aspecto de ter vindo do pó. Falava rimando: "maçãs com louçãs" "parente com decente". Ah, doía demais. Para os nojos enxugar, trouxe comigo três lenços pretos como asas de morcegos. Assim devia ser.
Olhei para baixo, do lado de fora do grande molusco. Um velho deus silvestre dava frutas às crianças. Uma moça dourada banhava-se num dos tantos espelhos de água. Uma estátua cegava-se com meia dúzia de vendas e sua balança pendia, caída para um lado. E ria, ria, ria!
Os fedores de doença estavam insuportáveis no calor daquela tarde esturricada, forjada em bigorna de sol.
Às doze em ponto, um assessor, saído do carpete azul, galopava pelos melancólicos corredores espalhando documentos falsos, boletins inúteis e inscrições para novos concursos, como se o pessoalzinho que mamava ali fosse insuficiente.
E os ataúdes, que levarão os representantes do povo, esperam. Ninguém sabe bem o quê. Alguns eram abaulados para caberem as panças dos gastadores de alfabeto.
Ahnn....... eu já tinha visto tudo que precisava ver. Desde as sonolentas expressões bovinas até os olhos vivos das raposas.
Desci.
O céu tinha nuvens, as mais fofas que se pode imaginar: rabos de galo, carneirinhos, cirrus, cúmulos, nimbus, stratus.
Com um calafrio escarlate abri caminho entre pequenas pombinhas de monumentos. Algumas claudicavam com pequeninas muletas.
A noite pesava, e a troquei de ombro para descansar. Foi então que vi cair uma semente de congressista e me apressei a esmagá-la. Aquela terra era fértil demais.
Angela Weingärtner Becker
PS.: Li Lorca, de um gole só. Que ele me perdoe pela influência.
2 comentários:
Angela,
Que maravilha de texto. O final então é surpreendentemente maravilhoso.
Lírico, criativo e sensível
Um beijo em tuas palavras,
Carinho meu
CEL
Obrigada, Carlos. Você que ama as palavras, eu sei...fico feliz.Pena que este assunto , neste país, não sai de moda...
Postar um comentário