O Burguês, segundo Sartre
conforme o livro "O século de Sartre" de Bernard-Henri  Lévy (ed. Nova Fronteira)

Burguês é aquele que acredita que existe um “papel”e que encena a comédia do seu próprio papel, à custa dessa incessante e maravilhosa invenção de si. É o estado de espírito daquele que acredita que este papel existe, que ele tem um sentido, que o mundo é feito de um repertório de máscaras, bem ajustadas, em concordância: é alguém que “crê no mundo”, fecha-se às experiências da contingência e da náusea e vive na ilusão de que a sociedade é uma bela e boa máquina da qual ele seria um dos pistons e passará a maior parte de seu tempo na manutenção de seu piston.

Antes de sair de um dicionário das virtudes e de se aplicar, por exemplo, a um torturador, um assassino, um fascista no sentido corrente, um pervertido, é uma categoria metafísica que designa um cara q não duvida de nada e sobretudo de sua própria existenciazinha nessa grande e vasta sociedade, em que encontrou seu papel e seu lugar, acha natural que haja Ser em vez de Nada e que por causa disso, por causa deste não-espanto primeiro, pela falta de questionamento e de senso filosófico, não vê por que se inquietar com o estilo da sociedade em que vive, nem com a natureza do regime que a governa, nem finalmente com a posição que ocupa nela. É alguém que vê o mundo como uma ordem e sua posição neste mundo como uma absoluta necessidade e vai considerar seus privilégios como de fato privilégios de direito e esmagar, muito logicamente, quem quer que pretenda atacar este direito.

O que é mesmo um burguês? Não exatamente uma categoria política, nem uma classe social. É um modo de instalação no ser. É a parte que em cada homem conjuga a gravidade do espírito de seriedade e a ausência da dúvida. É burguês aquele que, achando necessária e legítima a ordem presente das coisas, dedica-se a traçar a dinastia dessa ordem. É burguês aquele que procura fundar sua certeza de que “bem antes de seu nascimento” estava o “seu lugar marcado, ao sol” de que “o mundo o esperava”, senão desde sempre, pelo menos há algumas gerações. É o lado “herdeiro” do burguês. É esse insuportável laço sucessorial.

É burguês aquele que nunca duvidando da ordem instituída das coisas, nunca hesitando, por um segundo sequer, quanto a sua tenebrosa e profunda legitimidade, dedica-se a perenizá-la. Garantido pela certeza ser o mundo essa bela e boa máquina em que ele tem seu lugar bem marcado, vai naturalmente escorar-se para que nada mude e que seja conjurado qualquer eventual surgimento de alteralidade que possa vir a tudo revirar. É o lado “conservador” dos burgueses.

É tendência deles perpetuar o que existe e, se possível, eternizá-lo. É burguês aquele que mesmo trabalhador ou proletário, sente-se enraizado, não apenas na sociedade, mas no mundo, não somente no mundo, mas no Ser. É burguesa a visão de um ser pleno, opaco, sem falha nem brecha, em que se teria, qualquer que seja seu estatuto social. “É burguês aquele que se dá o tempo de olhar bem o seu interior, para “o maciço granítico de seus gostos”. Tipo de existência do rochedo, a consistência, a inércia, a opacidade do ser-no-meio-do-mundo. Este que não tem a menor dúvida da natureza de seus gostos assim como a qualidade de sua inscrição neste mundo e pode responder com bom timbre “eis os meus gostos, eis o que sou, isto sou eu, eu sou o fulano de tal por inteiro”.

Angela Weingärtner Becker

Um comentário:

João Carlos Figueiredo disse...

Olá, Ângela!

Lembro-me de um poema de Maiakovski que dizia: "come ananás, mastiga perdiz; teu dia está perto, burguês!". A partir daí, em minha plena juventude revolucionária, a palavra "burguês" permaneceu indissoluvelmente atrelada às elites sociais do mundo capitalista...

É curioso como as palavras e expressões de uma língua têm vida própria, transformando-se independentemente de suas origens etimológicas, e adquirindo novos valores e conceitos, conotativamente associados às experiências que "viveu" na sociedade humana.

Assim aconteceu com o "burguês", não é mesmo? De sua origem nos burgos (pequenas cidades) do século XVII restou pouco, pois lá então identificava tão-somente os pequenos comerciantes que habitavam o interior das muralhas dessas vilas, e apenas isso.

Depois, essa "classe" se desenvolveu e passou a ameaçar a nobreza, terminando por derrubá-la, substituindo-a no poder. Burguês passou a ser um cidadão (comerciante) bem sucedido, que ascendeu nas classes sociais até dominar o poder econômico e político de então.

Com o marxismo, porém, a palavra adquire novo significado, representando justamente esse ser acomodado e oportunista que extorquia a classe trabalhadora, chamada apenas de "proletariado", palavra que, por sua vez, provém da antiga Roma, e que identificava as pessoas sem posses e detentoras de grandes "proles" (ou filhos), simplesmente isso.

No marxismo, portanto, o proletário se contrapunha ao burguês, visto que este detinha a posse de bens capitalistas e o outro apenas a força de trabalho explorada e expropriada pelos patrões.

Em seu texto, Ângela, você nos traz a inteligência de Sarte que, novamente, subverte a palavra e a enriquece com novas qualidades mais subjetivas, associando-a não apenas à sua função social de diferenciar cidadãos pelo poder econômico e político que adquiriram, mas também, e principalmente, unindo-o à acomodação própria de quem tem algo a perder e não quer se expor a contestar o mundo...

...e, no entanto, Sartre era um pensador de esquerda, da intelligentzia que tentou mudar o poder, não pela evolução natural das ideologias, mas pela revolução intelectual que concebia o Estado como a expressão central das sociedade humana e o indivíduo apenas como o ser que viabilizava aquele, em busca de uma sociedade sem classes e igualitária, que nunca existiu ou existirá...

Excelente artigo, Ângela! Beijo!