Picasso e suas influências

       Em 1907 sucede em Paris a exposição de Cézanne e paralelamente, no Museu das Ciências do Homem (Musée de l'Homme, é um museu etnográfico deParis, localizado na Place du Trocadéro) acontece uma exposição de máscaras africanas. Picasso vê as duas exposições e fica impressionado. No livro “Autobiografia de Alice Toklas” é narrado que, em visita à casa da escritora Gertrude Stein, sua amiga e mecenas, teria examinado longamente uma peça africana e mais tarde em entrevista diria “Arte Africana? Que é isso? Não conheço”.
                                                       Máscara Fang, séc XIX, Gabão

      Na verdade, por volta da virada do século, muitos artistas que se opunham ao processo das forças de urbanização na sociedade capitalista ocidental, já demonstravam uma tendência primitiva que se produzia na sociedade e internamente na arte moderna. Os artistas de vanguarda, mantinham de algum modo, contato com esta expressão artística “incontaminada”. Ou acaso seria como o filósofo-historiador Michel Foucault concebe na sua “teoria do discurso” uma relação de poder do europeu sobre os povos “atrasados e incivilzados”? O certo é que o primitivismo era já uma complexa rede de interesses ideológicos, estéticos, científicos e antropológicos e estas idéias estão inscritas em Picasso e notadamente na obra “Gertrude Stein” que, convenhamos, é a própria máscara africana.("uma rosa é uma rosa é uma rosa", poema que a tornou célebre). Fora isso, Picasso tinha uma coleção de máscaras africanas...


Retrato de Gertrude Stein, 1906 

      Com Les Demoiselles d’Avignon, 1907, nasce a arte moderna. Picasso mistura   arte egípcia, arte africana e toda uma influência de Cézanne. Ele é um agenciador. Articula uma nova lógica. Faz 800 esboços. É a primeira obra ocidental que quebra a representação do visível. Ele estilhaça o olhar. A visão vai além do que o olho humano consegue ver.Mas a pintura pode, a arte pode.

      André Breton(teórico do surrealismo) diz que Picasso criou o exorcismo puro.Max Jacob(jornalista e poeta) "a essência do novo tempo em estado bruto".
                                                    Les Demoiselles d'Avignon,1907

      Quem além de Picasso ousaria, no século XIX,fazer uma fusão da tradição ocidental com cultura africana? Ele é uma síntese do século XX. Morre só para nascer de novo e junto com ele as fases...e ao mesmo tempo tem um fio condutor em toda a sua diversa obra. "Eu não procuro, eu encontro" "Eu não sou escravo do olho"Suas frases justas e claras são como seu trabalho.

O Renascimento florentino diz que a visão é soberana. Picasso, afinado com a ciência do século XX, sabe que a visão é limitada e o olho é a domesticação da verdade. Picasso desconstrói  e recria uma nova sintaxe. A idéia de antropofagia tão brasileira aparentemente, é francesa. É francesa?
                                                            Angela Weingärtner Becker


                                                        (1881-1973)


        Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso ou simplesmente Pablo Picasso ou ainda menos... Picasso! Nome que enche a boca e a alma de qualquer um que o pronuncia. Ele foi, com certeza, o nome mais importante, no campo das Artes, do século XX.
       Nasce em Málaga, vai para Barcelona em 1895 e chega em Paris em1900. Sua primeira pintura foi “1ª. Comunhão” feita em moldes bem acadêmicos e “espanhóis” sofrendo influência da pintura francesa, mais precisamente de Monet. Sua segunda pintura foi “O Velho” quando copia dos grandes mestres aprimorando o olhar construtivo do objeto. 

                                                                  1a. Comunhão
      Picasso era metódico: punha dia, mês, ano em seus quadros e tinha a consciência de que seria grande, no futuro. Ele pintava para a posteridade.“Eu não procuro, eu encontro” sua famosa frase nos diz que ele sabia onde estava pisando.
      Arrojado, Picasso  não tem preconceitos. Tira proveito imenso de todas as tendências à sua volta. Dialoga com o expressionismo alemão, com a arte africana, com o art nouveau, com os pintores van Gogh, Toulouse Lautrec, Gauguin, mas sobretudo com Cézanne que vê a natureza feita de cubo, cilindro e esfera.
      Apollinaire diz de Picasso: O pintor cubista. “Mas dizer que Picasso é cubista” diz o professor Brolezzi (do MASP) “é ser míope”. Com isso explica que Picasso passou por absolutamente tudo o que lhe traçava a frente, do clássico ao surrealismo, do impressionismo ao cubismo.
     Seus olhos amendoados, astutos, febris e também gelados, vasculhavam as vanguardas, tendo um diálogo constante com a intelectualidade da época.

                                                         Jaqueline Roque com Flores

                                                                    Mulher chorando

                                                                       Mulher com flor
                                                                         A leitora

           E não esqueçamos as mulheres. Ele não dispensava ex mulher quando se casava com outra. Picasso somava mulheres em sua vida. Elas é que o inspiravam.E isto está refletido em sua pintura. Seus relacionamentos coincidiam com suas fases.Olga, Marie-Thèrese, Dora Maar, são alguns nomes importantes.
     Quando em 1901, morre seu querido amigo de infância, Casagemas, carrega sua obra de azul.“Foi minha primeira morte” diz. Assim entra em sua fase azul.O azul do luto, em Málaga.

                                                   
                                                 Tragédia
       Quando em 1900 Freud escreve “A Interpretação dos sonhos” recebe um abalo: o homem é muito mais vasto do que sempre pensou. Ao entrar em contato com a física quântica compreende que o olho humano não consegue ver a estrutura da matéria. Então procura esta realidade que escapa aos sentidos, e decompõe-na para mostrar em suas telas a estrutura invisível: inaugurava o cubismo.

                                                      Retrato de Ambroise Vollard

        A arte não fica mais a serviço da representação. Picasso disseca o mundo. A clareza do universo acadêmico se esvai. Perdeu-se o código. Já não deveríamos perguntar a uma obra o que ela significa mas qual a série de significados que ela encena.
             Para Picasso era fundamental o contato com antropólogos, cientistas, poetas. Ele reflete junto com o pensamento de outras culturas. "O monopólio da razão não é mais ocidental” diz o professor do MASP, existem outras lógicas.
             Picasso fez escultura, pintura,cerâmica,cenários.
                                                                 Cabeça de touro

      Extraordinariamente perceptivo, ele vai e volta na Arte. Sua libido o move. Os acontecimentos do mundo passam pelo seu filtro pessoal. Eros e Tânatos aparecem em sua obra. Esgota-se explorando todas as possibilidades. Persistente, pinta 800 esboços de Mademoiselles d’Avignon.  Incansável no amor, incansável no trabalho.É o touro e o toureiro das Artes. Picasso é um assunto inesgotável e por isso continuarei com este tema em mais algumas postagens.

Demoiselles d'Avignon



                             Toulouse- Lautrec- (1864 – 1901)


       Quando pensamos em Toulouse-Lautrec, imediatamente pensamos em um anão. Não é verdade. Aos 14 anos, ele sofre duplo acidente, quebrando a perna direita e depois, numa simetria funesta, quebra a esquerda, ficando com a parte inferior do corpo atrofiada. Com 1,52m de altura, sua aparência é bizarra e pode ser esta a razão maior de escolher a marginalidade de Paris (Montmartre) para viver.
  Henri de Toulouse-Lautrec, proveniente de família aristocrática, vai freqüentar as casas noturnas parisienses (Moulin Rouge). Será o pintor do artifício, da maquillage, da fantasia, da noite urbana, das dançarinas, das prostitutas (La Goule, Madame Avril,Valentim-le-Désossé).


              Le Bal du Moulin Rouge  (Valentin le Désossé está representado perto da Bailarina)

         Ele fará a apologia do que Baudelaire chamava “o mundo doentio” de Montmartre que era onde o coração de Paris batia. Pinta as dançarinas do can-can, o circo, os cavalos de corrida, o picadeiro.Sua poética é a do movimento e da linha. Traços rápidos e precisos, capta o movimento num enquadramento fotográfico. Suas cores aquareladas são organizadas pela linha escura e forte, tudo amarrado com genialidade. Interessado no movimento, suas personagens trazem um esvaziamento psicológico, olhos no infinito.





         O cabaré é o estímulo para sua obra gráfica e pictórica (ele foi o inventor do cartaz e imortalizou-se por isto. Faz “afiches” de propaganda para os bailes de máscaras, e o veaudeville de Paris. Lá na noite de Montmartre conhece Van Gogh e sua pintura o impressiona. E é na noite que recolhe as motivações para sua obra, e o faz com grande senso de humor.Toulouse-Lautrec é um farrista.Sempre acompanhado de seu primo Monsieur Viaud (1,90m) vestidos de fraque preto, fazem uma dupla cômica e popular nas noitadas "sou uma chaleira amassada e achatada.Mas se vocês vissem o meu bico...” dizia ele ao referir-se à sua capacidade de sedução.







       É na noite, nos shows, nas casas de prostituição que o pintor se sente bem. Quando criticado sobre isso dizia: "não reclame se fico entre essas moças no cabaré, pois o senhor as têm em casa".

     Para desespero de sua mãe aristocrática, Condessa Adèle, que ignora seu filho portar uma bengala oca, com rosca, cheia de absinto sempre à mão, ele atravessava as noite, na balada.Sob excessos e falta de sono e sem um mínimo de regramento, contrai sífilis. Aos 37 anos morre conseqüência de seus problemas de alcoolismo. Henri de           Toulouse-Lautrece inaugura a inseparabilidade homem-obra:sua vida se esvai no seu metier. 
                                                 Angela Weingärtner Becker

Paul Cézanne   (1839-1906)



            “Vejo o mundo através de cones, cilindros e esferas”. Era mais ou menos isso que Cézanne dizia. Foi chamado de Pai do Modernismo porque foi ele quem retirou a arte do mundo sensível dos impressionistas e a colocou num mundo intelectual. As paisagens e pessoas eram vistas por ele, de forma geometrizante. Tudo era reduzido pela cor em suas estruturas  sólidas. "Cor para construir, não para emocionar”. Por isso a opacidade, o peso da matéria, a solidez e uma forte estrutura, são as características deste pintor francês, filho de banqueiro e de gênio muito esquisito.Terá uma relação extremamente problemática com o pai, que o queria advogado e não pintor. Cézanne tinha horror ao contato físico. Até para dar a mão em cumprimento lhe era penoso. 

                                                                                         Cézanne-(1877-79)

Casa-se com uma modelo e tem um filho que esconde dos seus pais até a idade de dez anos. De sensibilidade irritadiça, faz poucos amigos (um deles era o escritor Zola, com quem rompe em 1886 depois de se reconhecer em uma personagem suicida na história)
                                                  Banhistas

     Cezanne é o pintor que abre caminho para Picasso, e para a arte abstrata. Ele cria nova perspectiva que desde os clássicos vinha sendo igual. Para dar volume às formas, não se valia do claro/escuro."O contorno me escapa" dizia. E era considerado mau desenhista por algumas pessoas. Persistente, vai para a natureza em Aix de Provence onde sempre morou e pinta mais de 60 quadros do monte Sainte Victoire.


Sainte Victoire

 Retrata mulheres e homens com um esvaziamento psicológico impressionante.Suas banhistas tem um corpo pesado e reto, sem nenhuma sensualidade. Sentir, não era o que buscava. Ele buscava construir.E construía sem linha, sem contornos, como se quisesse construir a forma de uma maçã, de uma montanha, de um corpo de dentro pra fora, e pela cor moldar o mundo. A importância de Cézanne na Arte Moderna é crucial.Para admirá-lo como merece é preciso ter um novo olhar.


Mme Cézanne




Bibemos Quarry




Marc Chagall: tradicional e moderno ao mesmo tempo


                                             Marc Chagall, Bella e filha Ida


"O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
 Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
 Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia".



 Falando de sua aldeia, Fernando Pessoa lembra Chagall e seu rio, não o maior nem o mais belo rio, mas o rio especial porque passa por sua aldeia. Dois gênios aproximados pela evocação da terra-mãe, tema telúrico, e neste sentido, universal.

    A aldeia de Vitebsk, onde Moshe Shagal (mais tarde, Marc Chagall) cresceu muito pobre, junto com 8 irmãos numa comunidade judia, é a aldeia russa que Fernando Pessoa evoca em Portugal. Ritos, festas, a Tora, sinagogas e rabinos, constantemente aparecem em sua obra, fazendo-nos familiares aos símbolos judeus, que talvez sem sua obra, nos ficariam indiferentes. Recebe uma educação de poucos recursos, mas amorosa e rica em humanidade -até ir para São Petersburgo não tinha visto uma única imagem impressa-judeus não tinham permissão pela Bíblia de representar imagens- Sua arte, por toda a vida, vai beber desta fonte de força psíquica originada na educação judaica.


    Para estudar em São Petersburgo (1906 a 1910) teve de contornar a oposição familiar, religiosa, política (os judeus eram confinados em guetos) e econômicas (a família além de pobre, impedia-se pela religião de patrocinar aquele que queria ser pintor, e representar imagens).

     Mas uma vez em São Petersburgo, começa a ganhar fama como pintor e acaba estabelecendo-se em Paris,onde fervilhavam as artes modernistas. Lá experimenta as novas técnicas, mas sem abandonar seu estilo pessoal. Segundo Herbert Read, Chagall disse que se apresentou em Paris “com terra russa aderida a seus sapatos”. Quando volta novamente a Paris (1922) pela segunda vez emigrado, apresenta uma arte cada vez mais onírica, mais russa, mais religiosa. Mas de uma religiosidade ampla ”Não sou um pintor judeu.Só tenho relação com a Bíblia porque ela é para mim a maior fonte de poesia”. Assim como não tinha inclinação para confrontações religiosas, não a tinha para a política. E sua arte entendida como apolítica não foi bem vista na Rússia quando lá voltara pois lá tudo apontava para uma arte engajada.




       No entanto, Argan em seu livro “Arte Moderna” questiona ”se há algo na arte capaz de dar idéia do espírito com que o povo russo vivia os anos heróicos da revolução, é a pintura de Chagall, e não a pintura teórica e rigorista de Malevich”. Chagall era contra o terror e a violência. Esta foi por toda a sua vida uma característica marcante. Com seus sentimentos poderosos da alma russa,vai conseguir introduzir na Europa sua fulgurante pintura junto aos fauves, aos impressionistas e aos cubistas.




      A saída para sua exaltação lírica e realidade psíquica profunda é dada pelo impressionismo que lhe dá a “licença” de liberar-se. Sua visão do mundo não precisa passar por um esquema intelectual. E numa perspectiva arbitrária cria seu mundo de fábulas onde há vacas vermelhas, violinistas verdes, galos azuis abraçados com sua amada e tudo flutua sem peso, num céu de espaços impossíveis.



    Este interesse pelas raízes russas já se manifestava antes, com o movimento “Os Errantes” -1863:uma revalorização do homem russo camponês, sua inocência e austeridade como o verdadeiro protagonista da história russa. Até então com a europeização da Rússia, com Pedro,o Grande,“tudo o que era russo fora descartado como bárbaro e rude e a cultura passara a significar algo essencialmente estrangeiro”(Camila  Gray, p.10).



                               
        Em Paris Chagall vai combinar toda a nova pintura russa que surgia, com as técnicas de arte moderna. Ele mostrará tendências cubistas, onde a iconografia russa aparecerá geometrizada. Sua arte ilógica jamais se enquadrará dentro do cubismo racional. Nem chegará a ser um autêntico surrealista, nem simbolista tampouco. Vai dialogar superficialmente com estes movimentos, sem perder a independência.”Sempre manterá seus pés plantados na terra que o havia alimentado” nos esclarece Herbert Read.
     Quando estivera pela segunda vez na Rússia, casa-se com Bella Rosenfeld, que será sua esposa,inspiradora, secretária, amiga, protetora por 30 anos e aparecerá na obra de Chagall outros 30 anos ainda após sua súbita morte nos Estados Unidos, em 1944. Chagall celebra seu amor delicado e cheio de poesia.
      
               
      Em 1937, naturaliza-se francês e logo este ato é revogado pela eclosão da segunda guerra Mundial. Como judeu e artista “degenerado” é preso em 1941 e depois libertado pela intervenção norte-americana.
      Parte novamente para o exílio, agora nos Estados Unidos. Com a morte de Bella, fica prostrado por muito tempo e sua arte adquire tons nostálgicos, mas nunca com desespero ou pessimismo. Há um “desbotamento em suas cores, como se vê no quadro que produz nesta época, chamado “Crucificação Branca” e que faz alusão ao holocausto.Mas a pureza predomina sobre a tragédia. Ele era essencialmente conectado com a vida.Trabalhou sempre com intenso afinco que manteria durante sua longa vida mesmo em tempos de apavorante isolamento e dor.

                                      
    (Nesta obra, mistura símbolos judaicos com cristãos- a Tora,as velas, Cristo com a veste de oração judaica,e ao mesmo tempo possui auréola e a luzdos santos cristãos -o que contraria a crença judaica de que Cristo era um homem comum)
Chagall volta para a França e em 1948, casa-se com Valentine Brodsky quelhe dá paz e estabilidade para pintar até o resto de sua longa vida de 97 anos.        Angela Weingärtner Becker

CHAGALL e EU


 Minha vida andava insossa, quase um exílio. E não é que, de repente, meu coração se abre feito rosa de jardim! A verdade é que eu desatinara pelo russo pintor Marc Chagall.
 Banhava-me em tintas, flutuava pela casa com estranho brilho no olhar. Ele explodia em miríades de cores sobre mim. Apaixonada, acreditava que o arco-íris, a aurora e toda esperança começara nele.
Choviam topázios, ametistas, turmalinas, flores e estrelas no dia em que ganhei um enorme e pesado livro sobre ele.Cada página folheada tingia ouro em minhas mãos. O som de mil violinos chegava até mim. Luas peroladas, sóis faiscantes, cisnes azuis, bois, pássaros, madonas, cristos e rabinos. Tudo rodava em fulgurantes visões.


 Na vida, pela primeira vez, tinha experimentado o verdadeiro luxo.
 Dia e noite eu girava num carrossel de quadros do pintor. Ora me via sem peso, voando, ligada a ele por um fio de amor. Ora aninhada sobre a copa de uma árvore, em leito de flores brancas. Ora passeava com o amado, cheio de leveza e música.Meu corpo em arco galopava um galo colorido, tão íntimo e inseparável que nunca mais estaria só.



 E sempre o luar, a prata do luar, na noite mágica. Cada noite uma cor, cada noite um Natal. Noites verdes, criança, como as folhas novinhas. Noite leitosa, branca como seio de madona amamentando o filhinho. Noites violáceas, furta-cor, coisa de peixe do fundo do mar.

            Nunca, jamais, experimentara encantamento parecido. Ele me fazia andar em carroças voadoras, deitada sobre o ouro do feno amarelo. Feno cheiroso e macio para tratar as vacas vermelhas da aldeia de Vitebsk ou da minha própria aldeia do sul. Sim eu desatinara, como na música de Chico Buarque. Vivia auroras boreais, dormia tingida de fulgurâncias. Sua fria aldeia russa era minha própria cidade fria do sul. Ele, que perambulava o mundo com a terra natal grudada aos seus sapatos, se fazia conterrâneo meu. Juntos, a saudade nos irmanava. Uma resignação azul nos ungia, uma alegria rosa nos unia.




        Em Paris evocava , seu tio violinista verde. Aqui, eu buscava minha tia, pianista, no sul. Ele, exilado pela guerra tornava suas telas mais carregadas de terra natal. Eu, longe da minha, exilada também, me agarrava ao amor de Chagall. Em cada quadro, o aconchego, a ternura sem fim. 
Que fazia eu aqui na grande cidade, no sexto andar? Onde estava minha plácida vila nestes sapatos sempre limpos de terra?


 Foi então que resolvi. 
E assim como a manhã nasce cheia de desejos eu hoje nasci: vou chamar os anjos violetas de Chagall.  Chamarei o acrobata de circo, o palhaço voador, e a eles pedirei que unidos, alcem  minha cama aqui do alto e a depositem lá em baixo no pequeno gramado. E lá vou esperar Chagall. Sob uma abóbada celeste, cheinha de polidos diamantes, ele virá flutuando, mestre que é em flutuar.



      Será hoje, eu sei!
 Já escuto um adejar de asas. São seus anjos coloridos. Eles descerão até aqui, pela via láctea. Ouço harpas enquanto a noite se inclina para mim.
     Vou pedir ao seu pintor de lua que capriche no céu desta noite, numa lua tão cheia que a prata pingue nos telhados, gramado e árvores que já se preparam desabrochando rosas de rubis para o leito de amantes. Vejo os pássaros da noite, pontilhando o céu sem ruídos nem ventos. Eles somem, como judeus errantes. Em algum poleiro impossível, um galo há de abrir uma rosada manhã.


      Chagall virá, eu sei.
      O ar é fino e transparente. Um vulto paira e reconheço seus olhos ternos a perscrutar a noite de veludo. Ele me procura. Traz um cavalete, e apetrechos de pintar. Tela alva e cores de vitrais. Eu aguardo deitada sobre cambraia muito branca. Trago comigo um véu de noiva e um ramalhete de flores. Todo o meu corpo é dádiva e entrega.



       Ajeito-me em pose de maja desnuda. Partes de mim se adelgaçam, partes de mim se arredondam. Sou aquela que sempre esperou. Ele  prepara calmamente o seu olhar que vai à alma das cores, à alma da gente. Tintas, pincéis, paleta. Estou em estado de graça. Ele veio da esfera do sagrado para me delinear. Ele apronta-se para seu fino lavor. E sob estrelas de cristal, aguardo para que docemente me transfira para a tela.



  




 O Pão

                                                                                                         (Francis Ponge)


A superfície do pão é maravilhosa primeiro por causa desta impressão quase panorâmica que dá: como se tivesse ao dispor, sob a mão, os Alpes, o Taurus ou a Cordilheira dos Andes.
Assim pois uma massa amorfa enquanto arrota foi introduzida para nós no forno estelar, onde, endurecendo, se afeiçoou em vales, cumes, ondulações, ravinas... E todos esses planos desde então tão nitidamente articulados, essas lajes finas em que a luz aplicadamente deita os seus lumes, - sem um olhar sequer para a flacidez ignóbil subjacente.
Esse lasso e frio subsolo que se chama o miolo tem o seu tecido semelhante ao das esponjas: folhas ou flores são aí como irmãs siamesas soldadas por todos os cotovelos ao mesmo tempo. Logo que o pão endurece essas flores murcham murcham e contraem-se: destacam-se então umas das outras e a massa torna-se por isso friável.
Mas quebremo-la, calemo-nos: porque o pão deve ser a nossa boca menos objecto de respeito do que de refeição.






                                          Giorgio Morandi

Nunca pensei que um dia acharia graça no pintor italiano Giorgio Morandi (1890-1964). Suas garrafas eternamente repetidas em séries infindáveis me pareciam monótonas como um estribilho eterno e cansativo.
Homem de poucos amigos (só conheceu Cézanne dos artistas de sua época) e que nunca saiu de sua terra natal, e, ainda por cima só fazia pálidas e repetidas naturezas mortas, pouco me atraía.
Mais do que serenidade na agitação de sua época, me parecia estranho e algo absurdo. Até que neste sábado tive uma belíssima aula com Rodrigo Naves, no MASP.
Morandi, milagrosamente sai da obscuridade e, justamente o que eu desvalorizava, acaba por se ressaltar como grandes qualidades.





Morandi, como de Chirico e Carrá, faz parte da pintura chamada “ metafísica”. (a metafísica trata de problemas sobre o propósito e a origem da existência dos seres A pintura Metafísica nasce da intenção do artista em criar um mundo que não existe na realidade).
Dizia o professor “Enquanto de Chirico proclamava o absurdo, Morandi é o próprio absurdo”. Suas garrafas têm uma ausência de solidariedade entre si. Há um rompimento das coisas. Tudo é solto e há que ter um alguém em frente à tela que faça, com sua percepção, a unificação das coisas.
Esta é sua primeira fase.
Na segunda fase ele vai para o lado oposto em que passa a trabalhar com a unidade das coisas. Como faz isto? Faz principalmente pela tonalidade e graus de luminosidade.Seu repertório recorrente(as garrafas) contribuem para que, de tanto repetir os mesmos temas do mundo cotidiano, estes passem a se tornar idéias (platônicas).


Ao olharmos suas pinturas, vemos que há um véu que as cobre, uma neblina que as fazem aparecer como ecos das próprias coisas. Uma garrafa é a alma da garrafa. Tudo está num passado intemporal. A melancolia presente nos objetos humildes (pãozinho, garrafas, potes artesanais) estão sob uma cortina diáfana, sem tempo, sem história.
Naves usa a metáfora do pulôver feito pela avó com todo o desvelo e carinhos possíveis que vai ser vendido no mercado ao lado de pulôveres industrialmente feitos.Tudo terá o mesmo valor, e o valor afetivo do pulôver feito pela avó se perde ocultado e esmaecido.Morandi seria uma voz que grita artesanalmente contra o vazio da industrialização.Seus objetos saídos de uma época artesanal, hoje com sua luz corpórea, interrogam, clamam em sofrimento.
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AS ROMÃS- Paul Valéry


Duras romãs entreabertas
Pelo excesso dos grãos de ouro,
Eu vejo reis, todo um tesouro
Nascer de suas descobertas!

Se os sóis de onde ressurgis,
Ó romãs de entrevista tez,
Vos fazem, prenhes de altivez,
Romper os claustros de rubis,

E se o ouro cesse cede enfim
Ante a demanda ainda mais dura
E explode em gemas de carmim,

Essa luminosa ruptura
Faz sonhar uma alma que há em mim
De sua secreta arquitetura
.

(tradução: Augusto de Campos)