CHAGALL e EU


 Minha vida andava insossa, quase um exílio. E não é que, de repente, meu coração se abre feito rosa de jardim! A verdade é que eu desatinara pelo russo pintor Marc Chagall.
 Banhava-me em tintas, flutuava pela casa com estranho brilho no olhar. Ele explodia em miríades de cores sobre mim. Apaixonada, acreditava que o arco-íris, a aurora e toda esperança começara nele.
Choviam topázios, ametistas, turmalinas, flores e estrelas no dia em que ganhei um enorme e pesado livro sobre ele.Cada página folheada tingia ouro em minhas mãos. O som de mil violinos chegava até mim. Luas peroladas, sóis faiscantes, cisnes azuis, bois, pássaros, madonas, cristos e rabinos. Tudo rodava em fulgurantes visões.


 Na vida, pela primeira vez, tinha experimentado o verdadeiro luxo.
 Dia e noite eu girava num carrossel de quadros do pintor. Ora me via sem peso, voando, ligada a ele por um fio de amor. Ora aninhada sobre a copa de uma árvore, em leito de flores brancas. Ora passeava com o amado, cheio de leveza e música.Meu corpo em arco galopava um galo colorido, tão íntimo e inseparável que nunca mais estaria só.



 E sempre o luar, a prata do luar, na noite mágica. Cada noite uma cor, cada noite um Natal. Noites verdes, criança, como as folhas novinhas. Noite leitosa, branca como seio de madona amamentando o filhinho. Noites violáceas, furta-cor, coisa de peixe do fundo do mar.

            Nunca, jamais, experimentara encantamento parecido. Ele me fazia andar em carroças voadoras, deitada sobre o ouro do feno amarelo. Feno cheiroso e macio para tratar as vacas vermelhas da aldeia de Vitebsk ou da minha própria aldeia do sul. Sim eu desatinara, como na música de Chico Buarque. Vivia auroras boreais, dormia tingida de fulgurâncias. Sua fria aldeia russa era minha própria cidade fria do sul. Ele, que perambulava o mundo com a terra natal grudada aos seus sapatos, se fazia conterrâneo meu. Juntos, a saudade nos irmanava. Uma resignação azul nos ungia, uma alegria rosa nos unia.




        Em Paris evocava , seu tio violinista verde. Aqui, eu buscava minha tia, pianista, no sul. Ele, exilado pela guerra tornava suas telas mais carregadas de terra natal. Eu, longe da minha, exilada também, me agarrava ao amor de Chagall. Em cada quadro, o aconchego, a ternura sem fim. 
Que fazia eu aqui na grande cidade, no sexto andar? Onde estava minha plácida vila nestes sapatos sempre limpos de terra?


 Foi então que resolvi. 
E assim como a manhã nasce cheia de desejos eu hoje nasci: vou chamar os anjos violetas de Chagall.  Chamarei o acrobata de circo, o palhaço voador, e a eles pedirei que unidos, alcem  minha cama aqui do alto e a depositem lá em baixo no pequeno gramado. E lá vou esperar Chagall. Sob uma abóbada celeste, cheinha de polidos diamantes, ele virá flutuando, mestre que é em flutuar.



      Será hoje, eu sei!
 Já escuto um adejar de asas. São seus anjos coloridos. Eles descerão até aqui, pela via láctea. Ouço harpas enquanto a noite se inclina para mim.
     Vou pedir ao seu pintor de lua que capriche no céu desta noite, numa lua tão cheia que a prata pingue nos telhados, gramado e árvores que já se preparam desabrochando rosas de rubis para o leito de amantes. Vejo os pássaros da noite, pontilhando o céu sem ruídos nem ventos. Eles somem, como judeus errantes. Em algum poleiro impossível, um galo há de abrir uma rosada manhã.


      Chagall virá, eu sei.
      O ar é fino e transparente. Um vulto paira e reconheço seus olhos ternos a perscrutar a noite de veludo. Ele me procura. Traz um cavalete, e apetrechos de pintar. Tela alva e cores de vitrais. Eu aguardo deitada sobre cambraia muito branca. Trago comigo um véu de noiva e um ramalhete de flores. Todo o meu corpo é dádiva e entrega.



       Ajeito-me em pose de maja desnuda. Partes de mim se adelgaçam, partes de mim se arredondam. Sou aquela que sempre esperou. Ele  prepara calmamente o seu olhar que vai à alma das cores, à alma da gente. Tintas, pincéis, paleta. Estou em estado de graça. Ele veio da esfera do sagrado para me delinear. Ele apronta-se para seu fino lavor. E sob estrelas de cristal, aguardo para que docemente me transfira para a tela.


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