Auguste Rodin (1814-1917)


Rodin teve como ideal o renascentista Michelângelo que ele descobre em uma visita à Itália. Ao contrário dele, porém, que dizia ser necessário retirar a matéria para descobrir a figura que jazia adormecida na pedra, Rodin acrescentava matéria. Nesta concepção platônica de Michelangelo, Rodin seria um escultor “menor”. (Vejam-se seus “Escravos”.... Michelângelo com sua figura “non finita”, não terminada, mostra muito bem como a figura aparece no mármore do qual foi retirado o excesso). Rodin tinha em Michelângelo o seu mestre, mas a técnica era outra. Os tempos eram outros. O historiador de Arte Giulio Argan se refere a Rodin como o “Michelângelo da belle époque”.

No atelier de Rodin, vários modelos vivos andavam livremente. Quando um movimento lhe agradava, ele mandava parar e o modelava. Captava flashes. A fotografia veio influenciar seu modo de conceber a obra. Rilke escreve “Rodin supôs que movimentos singelos, simples, pouco aparentes que um modelo executa poderiam, quando captados rapidamente, conter uma força de expressão que não imaginamos, pois não estamos acostumados a acompanhá-los com atenção concentrada e ativa...assim ele registrou uma quantidade enorme de gestos jamais vistos, sempre perdidos e negligenciados, e evidenciou-se que a força de expressão que deles emanava era extraordinária...”
A Eterna Primavera, Auguste Rodin, MASP
Rodin nunca esculpia diretamente no mármore. Esculpia em argila densa, terracota, e moldava com as mãos. Depois transcrevia para o mármore ou bronze. Inicialmente baseava-se em modelo vivo. Com argila esculpe a forma em miniatura a partir do modelo vivo. Então cobre de gesso a argila ainda úmida. Fazia tudo primeiramente em gesso. Há quantidades inacreditáveis de modelos em gesso feitos por ele, explica Brolezzi, em aula no MASP.  Seu “desenho” era o gesso. A partir do modelo, com seus auxiliares- os canteiros que desbastavam a peça- vai transferir ao mármore. Para o bronze ele tira cópia em cera para começar o processo de fundição.

A Meditação, Auguste Rodin, MASP

O MASP possui duas obras de Rodin: A Meditação e A Eterna Primavera. Para a obra “A Meditação”, existem 12 versões, com algumas pequenas modificações e nomes diferentes. Na época, esta proliferação de esculturas muito parecidas, suscitaram críticas. No Museu D`Orsay praticamente a mesma obra do MASP está com o nome de “Alma Torturada”.  Aparece também como “Voz Interior” e “Alma Tortuosa”.                                                                                                                                                                 Em Rodin a matéria e' épica por si mesma. Muito sensual, sugere mais ao tato do que a visão. Em “Adão” (que está no Metropolitan Museum de NY) toda a musculatura é levada ao extremo. “Tem toda a “terribilita” de Michelângelo, a potência terrível do movimento. O corpo luta com a alma e a anatomia serve ao movimento. Não é realista mas ideal e épica. O movimento e extraído em seu esgotamento máximo”, nos fala Brolezzi.

Auguste Rodin começa sua vida de artista bem tarde. E é tarde que é reconhecido como escultor importante. Ele tinha 37 anos quando a primeira escultura foi exposta.

Na escola, Rodin  foi malsucedido e nunca aprendeu a escrever ou falar com correção, diz Rudolf Wittkower, grande estudioso da Escultura. Mas seu instinto estava sempre à flor da pele. Tinha, aliás, uma alma irascível, principalmente junto às mulheres. O exemplo mais conhecido é seu tumultuado caso com Camille Claudel, mas também com suas irmãs Marie e Rose. Bourdelle, seu aprendiz de escultura, trabalhou com ele por 15 anos e dizia que Rodin possuía a inteligência do fazer e que a teoria de Rodin só podia ser conhecida através de seus alunos e de suas mulheres. “O Sr. Rodin é um pedreiro, sua mão vale mais do que seu cérebro”.
Rodin, de fato, não é ligado ao mundo do intelecto. Ele se lança à matéria com intuição pura, sem erudição. Na obra “A Idade do Bronze” ele teria colocado o gesso direto no modelo vivo, Auguste Neyet, um soldado belga que lhe prestava serviço, conta Donald Reynolds, historiador de Arte. E isso se constituía em desonestidade.
O Beijo, Auguste Rodin

O artista se forma em Bruxelas, depois vai trabalhar em Paris. Segue para Meudon, em 1908, e volta a Paris, para o hotel de Biron que é cedido posteriormente pela prefeitura, desde que seja futuramente transformado no Museu Rodin.

Entre 1902 e 1906 terá como secretario o romântico e delicado poeta austro-alemão Rainer Maria Rilke. Eram opostos em tudo. Trabalham por 4 anos juntos até que Rilke é demitido por Rodin.

A obra que faz de Rodin um escultor das massas será “O Beijo “e “A Porta do Inferno” (6,35m de altura por 4m largura e mais de 20 anos para fazê-la). Será sua obra máxima onde vai se auto-citar em praticamente todas as suas grandes obras, como O Pensador, As Três Almas, O Angustiado e outras.
o Pensador, Auguste Rodin

Sobre “O Pensador” Rilke escreveu “toda a sua força concentra-se no pensar. Todo o seu corpo tornou-se crânio, e todo o sangue nas suas veias transformou-se em cérebro”. Hoje O Pensador, e o Beijo são patrimônios iconográficos da humanidade. Estão em nosso inconsciente coletivo.

Aos setenta anos, Rodin goza o auge de seu prestígio em toda a Europa, Estados Unidos e até no Japão.

O Monumento A Balzac (1891-97) suscita grande polêmica. Ninguém entende a escultura. “'Intimo demais, demasiado recolhido no silêncio de sua vestimenta” diria Rilke. Balzac foi retratado com corpo atarracado, nuca forte de onde levantava-se a farta cabeleira, a cabeça jogada para trás, vestido de roupão com capuz, como costumava trabalhar. O Estado a compra e proíbe que ele a reproduza.

Em 1916, por meio de três doações sucessivas, Rodin cede todo o seu acervo ao governo francês.
Auguste Rodin morre em 1917 e é sepultado em Meudon. Sobre sua tumba está a estátua do Pensador.

Angela Weingärtner Becker



Chaim Soutine (1893-1943)
 

CHAÏM SOUTINE (1894-1943),
UM ARTISTA GENIAL, uma tumultuada biografia

Que forte é a pintura de Soutine! Eu não consigo ficar indiferente. Quando observo, tenho o cuidado de não me deixar levar, não me deixar catapultar para dentro de sua obra. Tenho medo desta viagem labiríntica e ao mesmo tempo sou extremamente atraída pelo abismo.
Sabem como é.
Ele se lançava ferozmente sobre a tela, num ataque febril. Essa “possessão” esta loucura, esta fúria é perfeitamente sentida por nós na tinta pastosa para a qual somos densamente arrastados e absorvidos pelo redemoinho de seus quadros. Trata-se de grande força persuasiva, emotiva e expressiva.
Soutine nasce em Smilovichy, Lituânia, 400 habitantes. Neste minúsculo povoado judeu a pobreza era endêmica, a religiosidade ortodoxa, o conservadorismo absoluto. Sua atividade como pintor foi plena deste gueto (mas sem a doçura de Chagall ). “Os apátridas não abandonam nem renegam as tradições de seus países de origem, pelo contrário, introduzem-nas, combinando-os, na circulação da sociedade cosmopolita” observa Giulio Argan, em seu livro Arte Moderna. Com Soutine, o movimento foi de melancolia e liberação (nunca resolvida) daquela cidade de casas de madeira cinzentas, do tempo frio e cinzento.
Soutine era o décimo de onze filhos de um pai alfaiate e mãe muito dura. Onze filhos, imaginem. o trabalho árduo! Ela, velha antes do tempo, com muito medo, pouca comunicação, muita superstição e, claro, escassa afetividade.
Aos 13 anos, Soutine adora desenhar. Desenha em tudo, tipo muros e paredes. Começa um martírio de crueldades. Era ridicularizado pela família, pelas outras crianças e punido fisicamente. Seus irmãos batiam nele, dizendo que um judeu não devia pintar (as imagens eram proibidas pela religião). Essas pequenas torturas se tornaram um ritual constante na vida do menino q se escondia até que pela fome precisava sair do esconderijo e procurar comida. Mas ao menor ruído na cozinha, era surpreendido pelos irmãos que o aguardavam para bater mais ainda.
Certo dia, aos 16 anos, pediu a um senhor judeu para posar porque queria fazer o retrato. No dia seguinte, seus filhos e amigos pegaram Soutine e lhe deram uma surra. Estava quebrado. Sua mãe, então, deu queixa na polícia e Soutine recebeu a compensação de 25 rublos. Com este dinheiro foi para a cidade próxima, Minsk, para se tornar artista.
As coisas na vida dele aconteciam através da dor e humilhação.
Um ano depois, vai para Vilna e se matricula no curso de Belas Artes. No exame de admissão fica tão nervoso que erra a perspectiva ao desenhar um cubo e um cone, e chora muito. Com pena dele, o diretor da escola lhe dá nova chance. Sozinho na sala se sai maravilhosamente. Faz o curso de três anos com brilhantismo.
É ali que entra em contato com os mestres da pintura universal. É ali que ele busca temas evocativos de tristeza, miséria e sofrimento. Começa a desenvolver um estilo emotivo, agitado, enérgico, personalíssimo. A emoção transborda de seu trabalho e se torna turbulenta e movimentada num expressionismo veemente.
Muda-se para Paris em 1913 e, sendo um expressionista, matricula-se na Escola de Paris. Lá junta-se aos outros artistas em Montparnasse. Conhece Modigliani de quem fica amigo e serve como modelo para muitos retratos. Nos primeiros tempos, em Paris, come do pão que o diabo amassou. Muitas vezes ficava horas parado em frente a um café esperando que alguém lhe ofereça uma refeição.
Conta-se que expulsava os percevejos de sua cama com “o método da panelada” e o do querosene. Que improvisava ceroulas como camiseta. Mas apesar de tudo, para Soutine, os anos em Paris eram menos severos do que os tempos de sua infância. Sua energia para o trabalho o conservava bem vivo.
Seu estilo de empastar a cor era muito diferente de todos embora tivesse influências de van Gogh, El Greco, Rembrandt, Cézanne. De van Gogh tinha a característica profunda da personalidade melancólica e agitada, Cézanne lhe toca na questão espacial, cor, volumes e articulação de planos. El Greco lhe traz a distorção acomodada no espaço comprimido. Copia Rembrandt na pintura das carcaças de animais mortos.
Certa vez horrorizou os vizinhas que bateram em sua porta afim de descobrir de onde vinha o fedor de carne podre q impregnava tudo. Era de uma carcaça de boi q ele tinha levado para casa para pintar. Chamaram a polícia para a qual rapidamente Soutine faz um discurso da importância relativa da arte acima da higiene.
Ele pintava violenta, convulsiva e angustiadamente. Quando pinta paisagens “lemos” árvore, estrada e colina, com sentido diferente, diz Wendy Beckett, historiadora. Seus quadros são delirantes, de grande força, movimento e fluidez pesada.
Mas eis que chega o dia em que a sorte lhe bafeja. Em 1923, o colecionador americano Albert Barnes (que tive a graça de conhecer a fundação na Filadélfia) compra quase toda a sua produção e Soutine sai definitivamente da miséria.
Em 1937 é convidado a fazer parte da exposição dos artistas independentes, coisa rara entre artistas não-parisienses.
Mas chega a Segunda Guerra Mundial. Chaïm Soutine, oficializado como judeu, obriga-se a se refugiar nas cidadezinhas próximas de Paris onde tem de trocar de esconderijo constantemente. Torna-se ainda mais angustiado e doente. Em 1943 sofre uma ruptura de úlcera. Demora o atendimento para ser levado a Paris onde será operado. Morre na mesa de cirurgia.
Pode ser uma ilustração de criança
 Lituânia, numa cidadezinha de 400 habitantes. Neste povoado judeu a pobreza era endêmica, a religiosidade ortodoxa, o conservadorismo absoluto. Sua atividade como pintor foi plena deste gueto (mas sem a deliberada reminiscência como foi com Chagall). “Os apátridas não abandonam nem renegam as tradições de seus países de origem, pelo contrário, introduzem-nas, combinando-os, na circulação da sociedade cosmopolita” observa Giulio Argan, em seu livro Arte Moderna.


 
er Becker

A grande Onda 
"A Grande Onda Kanagawa" de Katsushika Hokusai, c. 1829-1832
Não faz muito tempo que o Japão está integrado ao mundo ocidental. Até o início do século XIX  vinha separado do resto do mundo, havia há uns duzentos anos, até que os Estados Unidos forçaram-no a entrar no mundo ocidental.
A xilografia “A grande onda” mostra um pouco dessa ideia que tínhamos do Japão como um povo que ficava à parte do Ocidente.
A obra foi feita pelo artista Hokusai e faz parte de uma série de "36 vistas do monte Fuji". É uma bela onda, com profundo azul, que se encrespa acima do mar. Ao longe vemos o elegante Monte Fuji com seu pico coberto de neve. Se formos mais atentos, veremos três barcos de pescadores  prestes a serem engolidos pela fúria do mar. A margem está longe, fora do alcance dos assustados pescadores. Uma aflição de alto mar nos invade e ao invés de ser um plácido desenho de natureza, típico japonês, acaba por ser uma imagem de incerteza e perigo. Parece que o artista pressente o momento mesmo em que  os Estados Unidos logo tirariam o Japão de seu estado de contemplação e o forçariam a entrar na turbulência ocidental.
Era o início da industrialização e novos consumidores estavam sendo avidamente detectados tanto pelos Estados Unidos como pela Inglaterra. O Japão seria um importante mercado a ser conquistado.

 Desde 1630  o país vivia isolado. Ninguém entrava e ninguém saía. Não havia missionário ou comerciante que não fosse perseguido até deixar as terras japonesas. Os cidadãos japoneses, por sua vez, estavam proibidos de sair do seu país. O único porto (aberto somente para o comércio com a Holanda e com a China) era Nagasaki. Com altas restrições. Assim, não entravam estrangeiros mas entravam produtos do resto do mundo.
“A grande onda” nos mostra isso, pois  era impressa com papel de amoreira japonês, mas o azul era pintado com tinta alemã: o azul da Prússia ou azul de Berlim. Tinta essa que não desbotava com facilidade. Era importada através dos holandeses ou talvez dos chineses “mais provável da China onde vinha sendo manufaturada desde a década de 1820” diz Neil MacGregor , autor de “a História do Mundo em 100 Objetos” de onde estas informações foram tiradas.  “A grande Onda” possui o azul da cor que todos gostavam, tanto europeus quanto japoneses.
“Hokusai foi buscar no Ocidente mais do que as cores- tomou emprestadas também as convenções da perspectiva europeia. Fica evidente que  deve ter estudado as gravuras europeias importadas e introduzidas no Japão pelos holandeses, que circulavam entre artistas e colecionadores” conta McGregor.
“A Grande Onda” tem portanto uma técnica europeia com a sensibilidade japonesa. Daí porque caiu de imediato no gosto europeu ao mesmo tempo que no japonês. O exótico estava ali na medida certa.
A obra, no entanto, era uma metáfora, um símbolo do sentimento japonês da época, prestes a deixar o conforto do isolamento e estabilidade para ir se aventurar para muito além. Tudo era uma espécie de ameaça para este povo que tinha rígidas leis de comportamento controladas com nada mais, nada menos do que a pena de morte. Mas, eles sabiam dos seus limites e de sua segurança. Agora abria-se o mundo à força pelos americanos que vieram sem ser convidados.
A série  teve, no mínimo, 5000 cópias e o preço era muito barato (equivalente a um prato de macarrão, diz McGregor) e visto assim era bem rentável cada uma das cópias da série de 36.
O Japão acabou por entender que não poderia ser uma ilha e entrou de cabeça no sistema econômico mundial. Ocidentalizou-se. A partir de 1853 as gravuras japonesas começaram a invadir a Europa. Sabemos o quanto a moda pegou através das obras de grandes pintores como os impressionistas. Van Gogh, por exemplo, que amava os delicados papeis japoneses e tudo o mais que vinha do Japão.
Vemos assim, como um influenciou o outro. “A Grande Onda”, porém, ficou em nosso imaginário como símbolo do Japão puro, isolado, eterno.
 Angela Weingärtner Becker

O Rinoceronte de Dürer-  a arte prevalece sobre a realidade

As novas tecnologias renascentistas em navios foram se encontrar com as novas tecnologias da imprensa no rinoceronte de Dürer.
Albrecht Dürer.1515, xilogravura

Por volta do século XV, os otomanos dominavam o Mediterrâneo, obrigando Espanha e Portugal a descobrir uma nova rota de comércio para o Oriente. Foi seguindo a costa da África, no Oceano Atlântico, que isto aconteceu. O Atlântico era difícil e perigoso. A costa da África, interminável. Mas este era o caminho alternativo possível: dobrar o Cabo da Boa Esperança e alcançar o Oriente. Foi por esta via que nosso rinoceronte viajou.

Afonso de Albuquerque o enviou, em 1514, por um navio que passava por ali. Albuquerque havia feito negociações onde presentes diplomáticos tinham sido trocados. No pacote estava um rinoceronte vivo, de uma tonelada e meia.

O animal viajou junto com seu tratador indiano, Osem, e muito arroz como ração. Assim viajaram por quase quatro meses, os coitados. A embarcação chegou a Lisboa recebida por uma multidão sedenta de novidades exóticas. A surpresa de ver um bicho daquele porte, e vivo, foi notícia espalhada por toda a Europa.

O rei de Portugal, D. Manuel I, resolveu bajular o papa LeãoX, pois precisava de seu apoio. Enviou o rinoceronte a Roma, como presente. O rei tinha certeza de que o papa cairia de amores pelo bicho assim como já havia feito anteriormente com um elefante branco, também vindo da Índia. Lá se foi o nosso rinoceronte devidamente acorrentado no navio. Mas nunca chegou. Na costa da Itália uma tempestade afundou o navio com rinoceronte e tudo.

O animal não foi esquecido, porém. Poemas, relatos, esboços e descrições inundaram a Europa que desde o Império Romano não mais tinha visto um exemplar.

Uma esquete do bicho veio a cair nas mãos de Albrecht Dürer, em Nuremberg, Alemanha. Ele jamais vira um, cara à cara, mas pelo esboço e por uma descrição fez sua xilogravura em detalhes. Detalhes que nem existiam. Desenhou o bicho com escamas, placas blindadas, pele enrugada pernas que terminavam em dedos largos, barba e um chifre extra na nuca. Morto o original, o desenho ganhou a Europa. Foi reproduzido em massa em Nuremberg, sede de editoras e gráficas, onde o próprio Dürer era tipógrafo.

Entre 4 a 5 mil cópias foram vendidas durante a vida do artista e milhões, até hoje. O rinoceronte, imaginado por Dürer, apareceu em livros de História Natural, em esculturas, em pinturas, em gárgulas, enfim. No século XVII o mundo inteiro tinha cópias. Mesmo depois de aparecerem desenhos mais realistas, a imagem feita por Dürer prevaleceu.

Até hoje temos em camisetas, chaveiros, ímãs de geladeira e miniaturas para presente esta famosa imagem.

Depois da morte do rinoceronte indiano,passaram-se mais de sessenta anos até que a Europa pudesse ver de novo um exemplar vivo.

Angela Weingärtner Becker


A Fundação Barnes: 69 Cézannes, 59 Matisses, 46 Picassos, 181 Renoirs
Albert Barnes-de Chirico 
É comum e sinal de prestígio, nos Estados Unidos, os cidadãos possuidores de grandes fortunas fazerem doações culturais, educacionais.Qualquer museu ou universidade atesta isso.
Localizada fora da cidade da Filadélfia, no subúrbio sonolento de Merion, nasceu a Fundação Barnes, de Albert Coombs Barnes. Filho de açougueiro, num dos bairros mais perigosos da Filadélfia, cresce o menino em um lugar onde, desde cedo, aprendiam a ser lutadores de rua.




interior da Barnes Foundation 
Conseguiu, no entanto, formar-se em medicina na Universidade da Filadéfia. De lá foi à Alemanha estudar química. Alcançou uma fortuna por meio de uma patente de remédio anti-cegueira, o nitrato de prata, cujo nome comercial era Argyrol, um antiséptico usado nos olhos dos recém-nascidos que evitava a cegueira e outras infecções comuns na virada do século XX, época de infecções gonocócicas. 
O Argyrol começou a ser largamente exportado e além disso os estados americanos passaram a obrigar o uso do remédio em cada recém-nascido. A estas alturas estava, ele e seu sócio alemão, muito ricos. Por desavença ele compra a parte do sócio e fica único dono. Bem administrado o negócio, começou a ter cada vez mais tempo livre e o dedicou a estudar e comprar Arte.



Os jogadores de cartas-Paul Cézanne

Poucos meses antes da grande depressão, em julho de 1929, vende seu negócio e coloca todo o dinheiro em títulos do governo. O crash da bolsa não o pega, tampouco o aparecimento dos  antibióticos que tornaria seu Argyrol obsoleto.
Desde o início do século ele compra arte em frequentes idas à Europa. Tornara-se amigo de Gertrude Stein e seu círculo, o que tudo facilitava. Foi o primeiro a reconhecer Chaim Soutine e saiu mesmo a notícia de que teria comprado toda a sua obra.



Banhistas Renoir
Com obstinação, Barnes reúne  uma grandiosa coleção que se tornou a melhor do mundo em termos de modernismo, impressonismo e pós-impressionismo. Compra  assombrosa coleção.

Um domingo no La Jatte -Seurat

A Fundação Barnes começa a funcionar em 1925 como uma instituição educacional. Ele comprara uma propriedade de 12 acres, em Merion, a 5km da Filadélfia. Esta fundação se tornou uma relíquia museológica, com uma pedagogia toda especial concebida por Barnes.

 Ele acreditava que na Arte somente é preciso ver o que está diante de si, sem rótulos, sem ordem cronológica, sem teorias. As harmonias das cores e formas cantariam por si mesmas fazendo as conexões necessárias. Não era preciso o benefício da palavra. E sua fundação deveria privilegiar trabalhadores. 

Mas a vida é cruel e em vez de sua coleção chegar aos operários e motoristas de caminhão, passou cada vez mais a educar as donas de casa e aposentados ricos.

O acrobata-Picasso
Albert Barnes era um homem meticuloso e  sua instituição sucumbiu pela sua própria rigidez. Não se podia cobrar ingresso, emprestar, trocar ou vender obras, aceitar doações, mudar seu horário de funcionamento, etc. E assim se tornou inviável e empobrecida. Para sobreviver, ela teria de ser removida do local onde estava.



Fundação em Merion

 Um juiz determinou que a Fundação iria para o centro da Filadélfia, contrariando o testamento de Barnes. Foi assim que a coleção ganhou uma nova casa situada entre a biblioteca pública e o Museu Rodin, na 2025 Benjamin Franklin Parkway, Philadelphia.



Barnes Foundation-Philadelphia 

Foi impressionante ver sua coleção no novo museu! Tanto quanto possível, respeitaram  a organização pessoal de Albert Barnes. As obras estavam dispostas nas paredes conforme seu método pedagógico, por cores, linhas e formas. Era um critério que eu nunca tinha visto em nenhum museu. Estavam lá exatamente como em Merion. O afresco que Matisse lhe fez especialmente, locado em sua casa, estava lá em plena glória. Mas Barnes jamais teria permitido!


 
Alegria de Viver-Matisse 

Vi seu museu na Filadélfia assim como vi sua casa em Merion. Andei por horas em suas bucólicas adjacências, onde está o Arboretum, jardim botânico, cultivado por sua mulher. Por um momento me dei conta que entre aquelas imensas árvores, por 53 anos, pelo sonho excêntrico de um homem, uma casa possuía 69 Cézannes, 59 Matisses, 46 Picassos, 16 Modiglianis, 7 van Goghs e 181 Renoirs ...e outros, estimadas entre 20 e 30 bilhões de dólares.

Barnes morre em 1951 em acidente automobilístico. Seu cão estava junto e não deixou ninguém se acercar. A polícia teve de baleá-lo para tentar socorrer Barnes. Em vão, porém. Estavam mortos, os dois, agora. Nem todo mundo foi fiel à Barnes como Fideles, o seu cão.
Angela Weingärtner Becker

 

 

 

José Leonilson Bezerra Dias



José Leonilson

Neste ano de 2014, em Londres, na Tate Modern, eu me deparo (com muita surpresa) com a única obra de um brasileiro.  Reconheço de longe a autoria mas, confesso, nunca antes ela havia me tomado com a força que podia. Leonilson já me passara várias vezes pela frente. Eu sabia dos traços principais da obra, mas ele ainda não havia “me entregado seu coração”.





Seus trabalhos de modesta aparência e de modestas dimensões, não tinham chegado até mim, talvez por esses motivos mesmo. Quase não perdôo a minha falta. Um livro sobre ele, “São tantas as verdades-Leonilson” escrito por Lisette Lagnado, jazia perdido em minha casa.

Mas a hora havia chegado. Olhei para aquela obra de voal branco, costurada em outro pedaço levemente cinza. Havia palavras bordads tais como medo, amor, delicadeza, solidão. E eis que uma doçura imensa me cobriu.

Voilá mon coeur
A verdade é que a obra me catapultou para dentro de si. A cada pessoa que passava, ela farfalhava leve, delicada e, ao mesmo tempo, podia-se ver ali toda a condição humana. Forte e tênue.Tocava-me  a solidão, o medo, o afeto, a morte, a delicadeza, o amor, o tempo. Penso que jamais vou esquecer este impacto.

Cristo segurando um rapaz acidentado
 Palavras não dão conta de sua obra, é preciso vivenciá-la. Ele havia tornado pública o seu interior psíquico. E isto comove. Assim como van Gogh comove pela exposição do hospício onde foi tratado, da orelha decepada, dos trigais onde enlouqueceu de vez. Assim como Frida Kahlo comove pela pintura dos seus abortos, do seu acidente. Assim como Bispo do Rosário comove pelas canecas  enfileiradas, pelo seu manto feito para encontrar Deus.


 

Com suas experiências intimistas, ele fala baixinho com a gente. Apresenta-se em nível confessional. E é assim que se dá a epifania.  
Em 1991, descobre-se portador do HIV e a convivência com a doença domina por completo a sua obra. Em 1992 começam suas internações. Refina-se ainda mais o seu gesto artístico e a expressão da sua condição. A obra ganha espiritualidade. Agora apresenta-se com a visceralidade dos órgãos: pulmão, coração, esqueletos, crânios.

O lirismo, o romantismo, a delicadeza, o sofrimento permeiam a obra. Ele borda com uma delicadeza de asa de anjo. E a metáfora não é gratuita. De família católica nordestina, traz em sua obra a herança da terra, da literatura de cordel, do artesanato, das crenças populares, mas sobretudo da religião. Começa a usar materiais como flores, margaridas, copos de leite, primulas, lírios, todos símbolos cristãos da inocência e da morte.


Na medida que acontece a desmaterialização do seu corpo (vai perdendo peso e mostrando os inequívocos sinais da doença) esta mesma desmaterialização acontece na obra. Cada uma  – e não se trata de uma comparação gratuita- é, sim, um pedaço de sua alma. Tanto aprofunda a reflexão que torna banal a sua doença e assim ao alcance de todos, como diz Lisette Lagnado. Seus bordados dos últimos meses devem ser vistos como autorretratos, diz a autora.

A obra de Leonilson repele o discurso da palavra dicionarizada (de tão afetiva que é) além de ser cheia de alegorias e simbolismos. A palavra é rasa, insuficiente, vazia. Cada peça é uma folha de diário, disse alguém. Cada peça é um pedaço do seu coração exposto na parede.


Talvez pelo profundo envolvimento que por fim se nos impõe, talvez pela consciência de estarmos pisando em terreno sagrado, José Leonilson, com seus bordados, seus pingentes de restos de candelabro, suas camisas usadas como materiais, ele nos toma por inteiro. "Voilá mon coeur"  é o título de uma obra, “O que você desejar, o que você quiser, eu estou aqui, pronto para servi-lo” é o título de outra. O que dizer? O quê?
Angela Weingärtner Becker

Museu Nacional de Arte da Catalunha (MNAC)

Quem for a Barcelona não pode perder o Museu Nacional da Catalunha, situado no Palácio Nacional, na montanha de Montjuïc.
 Ao chegar – e chega-se facilmente de metrô- vemos um espaço majestoso, com águas que descem lá de cima, chegando por escadarias até  em baixo, onde realizam um balé mágico do qual é difícil arredar os olhos.
em frente ao Museu 
Fui num dia azul e agradável e fiquei hipnotizada pelas fontes, pelo verde, pelo sol, pelo barulho das águas generosas. Em cima, bem no alto, ergue-se o majestoso museu.  Pode-se chegar a ele com conforto, por escadas rolantes que docemente nos conduzem ao Palácio transformado no MNAC, que reúne mais de 1000 anos de arte catalã, desde o século X ao século XX. Lá dentro nos espera a grande beleza, o espetáculo da maior coleção de arte românica do mundo. E não só isso.
Todas as disciplinas artísticas estão ali representadas: escultura, pintura, desenhos, cartazes, numismática, fotografia, enfim. Nomes famosos como El Greco, Zurbarán, Velázquez, Fortuny, Gaudí, Casas, Torres-García, Julio González, Dalí y Picasso.  Também temos lá outros nomes de peso das artes universais.
Mas o que quero muito falar aqui é sobre a coleção de arte românica abrigada pelo museu. É algo tão bem cuidado, de uma organização tão brilhante que não temos como não ficar boquiabertos. Eu nunca tinha ouvido falar desta grandiosidade. A série de pinturas murais são únicas no mundo e a maior parte  encontradas na própria Catalunha, nas igrejas românicas dos Pirineus, no chamado vale do Boí, hoje patrimônio da Humanidade.
E o que é arte Românica? O nome “românico” é do século XIX e compreende a arte feita entre os séculos XI e XIII (que depois vai se tornar arte gótica). Significa “semelhante ao romano” principalmente no uso da abóbada sustentada por pilares que substituiram o telhado de madeira. Eram muitos os relatos de incêndios antes desta inovação.
 A maioria das obras românicas pintadas e esculpidas é coletiva e anônima. Não havia ainda a questão autoral. No máximo fica-se sabendo o nome do mestre da oficina. Erroneamente pensamos em arte românica como pobre e rústica. Mas é de  alta sofisticação. Basta dar uma volta neste museu para compreender isto. Caracteriza-se pela valorização do espírito, pela concepção de mundo dominada pelo deus proposto pelo cristianismo. Então o que se vê são altares, crucifixos, vasos, baldaquinos, predelas, cetros, capitéis, cristos pantocrator (aquele que abençoa) virgens, profetas, anjos, santos e a narração de milagres e passagens da bíblia.  
Era esta a arte feita na Itália, Alemanha, Espanha, Inglaterra quase exclusivamente pelas ordens religiosas (beneditinos, os mendicantes, dominicanos, franciscanos) e também pelos monges armados militares: os Templários e Hospitalários.
 No ano mil, a Europa contava que o mundo iria acabar. Houve bruscas mudanças na conduta individual, desespero e zelo religioso. Mas o mundo não acabou e a Europa se cobriu de igrejas. Grandes e sólidas, as fortalezas de Deus juntavam-se a mais de mil mosteiros no final do século XII. A mais famosa das catedrais foi a conhecida Catedral de Pisa e seu campanário, a Torre de Pisa, cuja construção iniciou-se em 1.174  e que se inclinou porque, com o passar do tempo, o terreno cedeu.
 O fato é que se exaltou a fé e expandiu-se a arte românica. Pesadas igrejas de pedra e tijolos se ergueram com solidez e força. Sombrias, com um mínimo de aberturas e grandes portas sólidas. A decoração das grossas paredes é o afresco, o mosaico e tapetes.  Eram nessas igrejas que os peregrinos, que percorriam grandes distâncias, se hospedavam. Os mais procurados se encontravam em Jerusalém, Roma e Santiago de Compostela. 
Neste período românico a arte tem finalidades didáticas. Era preciso difundir a religião mas sobretudo combater as heresias e as superstições. A imagem, portanto, tinha uma importância crucial. Os livros eram raros e destinados à nobreza e clero. O povo era analfabeto. Ilustrações sobre a criação do universo e do homem eram extraídas dos livros religiosos e afrescadas em conventos, mosteiros e igrejas. Esse tipo de pintura praticamente não possuía nada de profano. Caracterizava-se pela deformação, falta de movimento, colorismo (cores chapadas, meios-tons, jogos de luz e sombras) O misticismo é intenso. A apresentação é concisa, esquemática, abstrata. Em pouquíssimo espaço, muita informação. Nada poderia tirar a atenção do espectador sobre a  mensagem. 

 Não havia nenhuma intenção de imitar a realidade. A rígida escultura não observa a anatomia. Tudo é convencional e carregado de significações simbólicas. As figuras humanas são alongadas, os panejamentos estilizados, as madeixas desenhadas com rigor, os olhos parados. Toda a lógica vai em direção da arte bizantina.

Ao andar por entre as obras românicas do museu é excitante poder mergulhar na época e imaginar um copista num mosteiro (espanhol de preferência) debruçado sobre um livro, caprichando no ornamento da letra inicial de um texto religioso. Ao fundo ouve-se um coro de monges em louvores aos céus! Este copista certamente era analfabeto e não sabia o que escrevia. Mas seria capaz de pintar com maestria, copiar com desenvoltura, fazer trabalhos em marfim e ouro em urdiduras finamente lavradas. Aliás, eram os escritórios dos monastérios que preservavam a cultura.

Em minha frente desenhava-se o homem medieval: da manhã à noite fazia especulações metafísicas, discutia revelações divinas. O medo, a superstição a negação do corpo. Uma fé ingênua, mística e visionária lhe ditava o comportamento. Temia a natureza, pois ali estavam os instintos e as paixões, a tentação e o pecado. À noite deitava com o espanto do inferno eterno.


A arte românica reflete tudo isso e da maneira mais curiosa e encantadora que se possa imaginar. Não percam este museu. Vale a pena esta viagem.


Angela Weingärtner Becker