Thyssen e as vanguardas artísticas (final)
Nesta parte do Museu, finda-se a pintura religiosa e a do Estado. É o cotidiano que entra como tema. Salas e salas vão do Impressionismo à Pop Art. Meu interesse aumenta. O passado agora contava cada vez menos, o futuro cada vez mais. A fotografia estava aí para registrar, documentar o que fosse preciso. Ao artista tocava a emoção, a criatividade. A Arte fragmentava-se em muitos movimentos que se sucediam e paralelizavam-se.

Eu estava ansiosa para ver quais eram as obras que os Thyssen tinham elegido para comprar. E eis que achei o meu Degas preferido. O voyeur que espia do alto. Como numa fotografia pega num rasgo, bastidores e palco. Um fragmento genial. A fugacidade da ação captada. Uma das bailarinas está completa, as outras quedam em nostra libre imaginación diz o site do museu.




"Bailarina verde" - Edgar Degas, 1877-1879
As endorfinas da euforia circulavam. Importantes obras da primeira metade do século XX: Manet, Monet, Pissarro, Renoir, Sisley. Bonnard, Gauguin e Cézanne. Este último  vê a natureza como cone, cilindro, esfera e assim geometrizada, entrega o bastão da História da Arte para Picasso que vai fazer a revolução que já conhecemos.

"Retrato de um camponês" 1905-1906 


Preciso ainda falar de van Gogh. Lá havia 5. Nunca, mas nunca mesmo, van Gogh é médio ou ruim. Mas tenho orgulho de dizer que nós, no MASP, temos cinco também. E mais representativos do que os do Thyssen. Orgulho-me. Sorrio sozinha. A brasilidade em mim aumenta quando estou fora. Soube que a própria região da Provença, na França, onde ele muito pintou, ressente-se de não ter tantos quadros como temos aqui em São Paulo. Digo intimamente: "Viva o Brasil!"




"Les Vessenots" en Auvers, 1890 - Vincent van Gogh
Agora estava indo para os finalmentes. Finalmentes? Temos os expressionistas Beckmann, Ensor, Grosz, Kokoschka. Temos oito Kirschner! Nem falei em Kandinsky e outros russos maravilhosos. Meu sonhador Chagall! Este "que tem a terra de sua aldeia presa aos sapatos" (H.Read). E assim evoca um tema que corre nas veias de todo ser humano, pois todos têm uma aldeia dentro de si. Ele tinha Vitebsk. Eu tenho Santa Cruz do Sul.


"O Galo" - Marc Chagall, 1928


A coleção se estende com abundância: Bacon, Dali, Magritte. Quatro Lucien Freud. E quatro Kurt Schwitters, este alemão excêntrico que fez, talvez, a primeira instalação. Ele fazia obras que dava o nome de merz. E estas “cresciam” a ponto de mandar abrir o teto para seguir com a obra no segundo andar.

"The Psychiatrist", 1919 - Merzbild Kurt Schwitters

A Coleção Thyssen estava cada vez melhor. Eu ignorava esta riqueza. Ignorava e recebia tudo como um grande presente. Trago aqui um belíssimo Hopper: “Quarto de Hotel”. A frieza que se desprende deste quadro, é uma solidão dentro da solidão. Tudo está solto, nada conversa entre si. A mulher tem uma carta que está longe dos olhos. A vista para a rua não tem paisagem. É um soco no olhar. A luz é branca e fria, pesa e encurva as costas da mulher. Seu rosto está na escuridão. Tudo muito típico deste grande urbano pintor norte-americano, Edward Hopper.

"Quarto de Hotel"- Edward Hopper, 1931

A visita chegara ao fim. Precisaria de muito mais tempo. Ainda volto lá. Notei uma coisa, mas só posso dizer bem baixinho: o gosto dos Thyssen  coincide com o meu.
Para o hotel, fui caminhando a metros do chão. Sorte minha eu ter comigo duas pessoas. Tonta, eu as seguia, numa Madri cheia de gente passeando. Era sábado. Madrileños vão ao centro passear com a família.
Angela Weingärtner Becker
Thyssen, pura excelência (parte II)
Subi para o segundo piso do Museu Thyssen onde ficam os primitivos e o “quatrocento” italiano.

                                          "Cristo Ressuscitado". Bramantino,1490 
Logo dei de cara com um Cristo que me lembrou Dali. Cores, técnica, atmosfera. Cheguei a levar um susto.Um quadro que bem poderia ser dele. Imagine... de 1490! Atribuído  ao pintor Bramante, os críticos agora se inclinam pela autoria de Bramantino, seu discípulo. Isso acontecia muito, porque era “norma” o discípulo copiar o mestre. Graças à convergência da pintura flamenga com a italiana, tem-se, de repente, este Cristo tão humano, tangível e presente. Uma lua transparente com estranhas feições humanas confirma minha opinião de surrealidade.


Retratos, pinturas italianas e alemãs, do século XVI. A arte, antes dura e estática,  vai rolando para um realismo esplêndido. 
Percorro, fascinada, os Tizianos, os escuros Tintorettos, os dramáticos Caravaggios. Este, mestre da luz e do movimento, com rostos que emergem da escuridão. Para seus cristos e santos, usava como modelo, gente comum, da rua.Tudo nele é passional. Ele mesmo, um  "fora da lei" com história de assassinato, inclusive. Lembrei de uma exposição que vi aqui em São Paulo, onde os alunos de Arte colocam, sob a foto de Caravaggio, a legenda “Procura-se”.
Rico museu, este Thyssen. Vai do 8 ao 80 ao longo da história. Coisa que nem Prado nem Louvre o fazem. O Tyssen-Bornemisza dá uma visão geral da Arte (evidentemente com menos obras do que os dois antes citados). Precisaria de meses para apreciá-lo como merece. É curto o tempo para ver Rembrandt, este que amo, por seu tratamento da luz, e naturalismo. Ou Brueghel, o Velho. Ou Dürer. Ou, ainda, os perfeitos retratos de Hans Holbein.

"Jesus entre os Doutores" Albrecht Durer,1506
Mas, diante de El Greco, estanquei. É que ele “chama meu nome”. Ignorá-lo, impossível. Parei diante de suas figuras brancas, alongadas, várias cenas no mesmo espaço. Um turbilhão. Escuta-se o adejar de asas de anjos. Mãos e pés de El Greco, são uma coisa à parte. Quero sempre descobrir mãos e pés assim, na vida real. Ele, na pintura, se coloca único, sem escola, sem paralelo. Suas distorções nas figuras humanas eram tamanhas, que (diz a lenda) seria portador de um defeito ótico. Não me parece assim. Vejo o movimento ascendente que ele fazia no espaço em direção aos céus. E todas as formas concorrem para isto.


"Anunciação", El Greco. 1596-1600

Passo pela sala do Barroco. Ribera, Murillo, e os flamengos Rubens e van Eyck. Quanta gente boa no pincel! E o italiano Tiepolo, já surgindo com temas mitológicos. Cores pálidas. Genial na composição, com enorme capacidade narrativa. Estendido sobre um pano, o amante do Deus Apolo, um jovem de pele clara e pose de abandono, agoniza. Mais uma vez, os Thyssen provam que tiveram faro e poder de compra. Dele compraram sua obra-prima.

A Morte de Jacinto. Giambatista Tiepolo. 1752-1753
Em seguida, o fotográfico Canaletto. Para mim, com mais valor documental do que outra coisa. Reconheço: há sol nos seus quadros. Consta que foi um dos primeiros a pintar ao ar livre e com ajuda de uma câmera escura. Com este recurso, conseguiu belas imagens urbanas, onde o horizonte é brumoso. Pode-se pensar até em uma sugestão para o futuro impressionismo.

"II Canale Grande a São Vio", Canaletto
 Passei para o primeiro andar. Um cafezinho para tomar fôlego. Espiei o catálogo: a temática ia mudar. Cenas cotidianas, paisagens, naturezas mortas.
Vi Watteau, o papa do rococó, Boucher e Fragonard. Levíssimos, cheios de vento, eu diria. Expressão da aristocracia decadente da França. Em oposição, o neoclássico: Ingres, com cânones e regras. A Arte, antes serviu à religião, agora servia ao Estado.
Bem adiante me deparo com inúmeras telas de pintura norte- americana. Coisa rara de se encontrar. Século XIX, paisagens francamente baseadas no Romantismo do novo Éden, do Novo Mundo. Com tendência simbolista e espiritualista, marinas e paisagens se sucedem. Nomes desconhecidos, mas para mim, pinturas vagamente dejà vu. O interesse diminui, tudo igual. Passo rápido.

"Outono em Nova Inglaterra, a elaboração da sidra."
George Durrie,1863
Eu ainda tinha muita estrada a percorrer. O fio cronológico caminhava de trás para a frente. O rés-do-chão do Museu estava dedicado aos primeiros movimentos de vanguarda do século XX até a Pop Art. Esta era a parte que mais me interessava. Eu precisava andar depressa.
Angela Weingaätner Becker


 



 Museu Thyssen, Madri  (Parte 1)
O taxi-van deslizou os 13 km até o centro de Madri, para um hotel simples, honesto e bem localizado.
As malas no hotel, o banho para acordar e umas tapas para sustentar no mínimo umas quatro horas de Thyssen-Bornemisza. Este, junto com o Prado e o Reina Sofia, fazem parte do “Paseo del Arte”, no centro de Madri.
Chegando ao Museu, pude ver as lindas árvores cujas copas quase fechavam o céu, naquele dia azul-maravilhoso. Árvores de troncos centenários. Imediatamente minha imaginação viu a linda Baronesa Carmen Thyssen, amarrada a um deles. Foi o que fez, no ano de 2007, em protesto pela derrubada das árvores, quando da remodelação do espaço. A viúva do Barão Hans Thyssen- Bornemisza, Carmen (Tita), Miss Espanha em 1961, e ex do ator Lex Baker (que fazia o Tarzan) com chapéu e correntes,  parecia  saída de um filme de Almodóvar.


A Baronesa Thyssen na concentração SOS “Paseo del Prado” 
(Foto: Javi Martínez, 2007/05/07)

Mas polêmicas aristocráticas à parte, ela está ligada à maior coleção privada de arte do mundo. Com 715 obras no Palácio Villahermosa. O restante encontra-se no Museu Nacional d'Art de Catalunya, em Barcelona.Em 1992 estavam emprestadas ao governo espanhol. Um ano depois foram doadas em definitivo.

Atravessei o pátio central coberto e amplo. Fui ao segundo piso para ver as obras do século XIV e XV. Eu veria, então, “os primitivos italianos” depois os góticos neerlandeses (países baixos) a pintura conhecida como bizantina. Figuras de frente, sobre um fundo plano e dourado. E sempre figuras sagradas. Mais tarde, a representação de uma história teria um cenário que o espectador reconheceria por ser familiarizado com os Evangelhos. Isto já com a luz da  Renascença no fim do túnel.

Na primeira sala, imagens planas, chapadas como figuras de baralho. Sempre as mesmas imagens: Virgens esquematizadas, petrificadas, segurando um Jesus-menino, com rosto de adulto. Crucificações, Descidas da Cruz, Cristos pantocrátor (o todo-poderoso, que abençoa). E ouro no fundo: símbolo de um mundo acima do físico. Ah, pensei: aqui estão as regras impostas pelo imperador Constantino. Ele sabia que tornar-se cristão era um bom negócio político. Converteu-se. Uniu poder com religião. Então fundiu o cristianismo com a arte grega, pagã.

Naquela época o artista era artesão e não artista como entendemos hoje. Enquanto pintava, rezava ou cantava cantos religiosos. Um artesão anônimo, perfeito seguidor de regras. Mas nem por isso deixava de ter encantos e delicadezas. Num vapt podia me transportar para um mosteiro. Um cheiro de incenso, o pecado, as autoflagelações, poções mágicas, relíquias e relicários. O filme "O nome da Rosa" baseado no livro de Humberto Eco, desfilava inteiro por ali.

"Tríptico da Virgem com o Menino" 1300-1310 


Depois, passei para os neerlandeses (países baixos) com sua pintura cheia de detalhes. Aqui, já há uma certa autoria. Uma certa perspectiva. Em 1390 nasce o pai mítico da pintura neerlandesa: Jan Van Eyck. Este, que pintou o casal Arnolfini (National Gallery, Londres). Esta imagem, por muito tempo vi pendurada no quarto do meu filho, atraído pela sua notável perfeição. Não é para menos que é considerado o mais célebre primitivo flamengo. Que de primitivo, não tem nada, penso eu. Basta ver este díptico de La anunciación. É uma pintura, não escultura, como parece. Conseguiu este volume, esta profundidade, me diz como?! Pode-se ver a pedra, que coisa! Pois, é uma pintura, sim senhor. Pintura a óleo. Nem peço que acreditem em mim. É ir lá. Olhar para crer.

"Díptico da Anunciação." Jan van Eyck-1435-41


Os irmãos van Eyck são os inventores da tinta a óleo. A pintura seca devagar permite retoques, recebe veladuras, pode ser pintada em tela, enrolada e transportada. Trazida através dos Alpes. E, do lado de cá, fazer trocas técnicas importantes.
Alonguei-me nesta ala dos primitivos. Mas como fazer a carruagem andar neste museu carregado de grande número de obras importantes de cada fase da história? E de obras importantes dentro da história de cada artista em particular? São mais de 700 obras, e de obras escolhidas a dedo. O Barão Heinrich e seu filho Hans tinham, além de dinheiro, um feeling, uma consciência subjetiva, capaz de acertar quase sempre. Eu diria sempre! Muito grata, Barão e Baronesa. Esta, com inteligência e sensibilidade soube acrescentar em 2004, mais 200 esculturas e pinturas de sua coleção. A visita tinha apenas começado. Eu já transbordava de emoção.  
                                                                                                               Angela Weingärtner Becker



CRISTO NA CRUZ - Jorge Luis Borges.  Kyoto, 1984

Cristo na cruz. Os pés tocam a terra.
As três vigas são de igual altura.
Cristo não está no meio. É o terceiro.
A negra barba pende sobre o peito.
O rosto não é o rosto das lâminas.
É áspero e judeu. Não o vejo
e o seguirei buscando até o dia
último de meus passos pela terra.
O homem violado sofre e cala.
A coroa de espinhos o lastima.
Não o alcança o escárnio da plebe
que viu sua agonia tantas vezes.
A sua ou a de outro. Dá no mesmo.
Cristo na cruz. Desordenadamente
pensa no reino que talvez o espera,
pensa em uma mulher que não foi sua.
Não lhe é dado ver a teologia,
a indecifrável Trindade, os gnósticos,
as catedrais, a navalha de Occam,
a púrpura, a mitra, a liturgia,
a conversão de Guthrum pela espada,
a Inquisição, o "sangue dos mártires,
as atrozes Cruzadas, Joana D'Arc,
o Vaticano que bendiz exércitos.
Sabe que não é um deus e que é um homem
que morre com o dia. Não lhe importa.
Lhe importa o duro ferro dos cravos.
Não é um romano. Não é um grego. Geme.
Nos deixou esplêndidas metáforas
e uma doutrina do perdão que pode
anular o passado. (Essa sentença
foi escrita por um irlandês em um cárcere.)
A alma busca o fim, com urgência.
Escureceu um pouco. Já morreu.
Anda uma mosca pela carne quieta.
Que pode me servir que aquele homem
tenha sofrido, se eu sofro agora?


A Crucificação - El Greco
                                                  
CRISTO EN LA CRUZ
Cristo en la cruz. Los pies tocan la tierra.
Los três maderos son de igual altura.
Cristo no está en el médio. Es el tercero.
La negra barba pende sobre el pecho.
El rostro no es el rostro de las láminas.
Es áspero y judio. No lo veo
y seguiré buscándolo hasta el dia
último de mis pasos por la tierra.
El hombre quebrantado sufre y calla.
La corona de espinas lo lastima.
No lo alcanza la befa de la plebe
que ha visto su agonia tantas veces.
La suya o la de otro. Da lo mismo.
Cristo en la cruz. Desordenadamente
piensa em el reino que tal vez lo espera,
piensa en una mujer que no fue suya.
No le está dado ver la teología,
la indescifrable Trinidad, los gnósticos,
las catedrales, la navaja de Occam,
la púrpura. La mitra. La liturgia,
la conversión de Guthrum por la espada,
la Inquisición, la sangre de los mártires,
las atroces Cruzadas, Juana de Arco,
el Vaticano que bendice ejércitos.
Sabe que no es un dios y que es un hombre
que muere con el dia. No le importa.
Le importa el duro hierro de los clavos.
No es un romano. No es un griego. Gime.
Nos ha dejado espléndidas metáforas
y una doctrina del perdón que puede
anular el pasado. (Esa sentencia
la escribió un irlandes en una cárcel).
El alma busca el fin, apresurada.
Ha escurecido un poco. Ya se ha muerto.
Anda una mosca por Ia carne quieta.
De qué puede servirme que aquel  hombre
haya sufrido, sy yo sufro ahora?

                                                 
Hieronymus  Bosch coroa a vista ao Museo Nacional Del Prado
Sair da frente de um quadro de Memling, realista, de temas e harmonias visíveis e “cair” diante de um  Hieronymus Bosch é  uma experiência de choque.



“Jardim das Delícias”. Hieronymus Bosch, 1504
Detalhe
Ele, tão misterioso quanto suas pinturas, adotou o final do nome de sua cidade holandesa “s’Hertogenbosch”. Enigmática a obra, enigmática a vida. Fantástico, misterioso, aterrador. Um galerista com quem conversei afirmava, como muita gente o faz, que Bosch era surrealista. O Surrealismo supõe que o inconsciente seja a matéria da arte. Ora, na época de Bosch não existia o conceito de inconsciente (morre em 1516). Mas como duvidar de que “O Jardim das Delícias” seja matéria vinda do mais recôndito eu ? Salvador Dalí teria se inspirado em um detalhe deste quadro para fazer o seu “El Gran Masturbador”.

"El Gran Masturbador" -  Salvador Dalí, 1929
Dalí era um surrealista de cânone. Conhecia a obra de Freud, observava os manicômios, conhecia o fluxo de consciência. Bosch, não. Era um religioso. Sua obra trata de questões religiosas e ditados, e lendas nórdicas. Ele viaja pela alma holandesa. E viaja pela alma ocidental.

O certo é que não se consegue sair da frente dos quadros de Bosch. Mil detalhes para descobrir. Eles atraem, são um ímã e pedem tempo ao espectador. Difícil conseguir um lugarzinho para apreciar. Por cima do ombro de um, na mudança de posição de outro, sobra um espacinho.Todos fascinados. Fico pensando em quanto de Bosch temos hoje transmutado em “ciber” matéria. Mundos aquáticos, orgânicos, minerais. Virtude, perversão, pecado. Pessoas nuas, arquiteturas fantásticas. Ratos, peixes, romãs com proporções invertidas. E absolutamente tudo está em movimento, em ação. “Apoteose da beleza do mal”, diz o espanhol Joaquín Luaces..O Museu de Arte de São Paulo possui "As tentações de Santo Antão". Especula-se que este seria uma das versões (a parte central do tríptico) do Museu de Arte Antiga de Lisboa. Bosch teria feito 15 versões deste tema.

"As tentações de Santo Antão". Bosch, ano: +- 1500. MASP

Emergindo das profundezas de Bosch, passei diante de Albrecht Dürer. Não. Diante dele não se “passa”. Nem se “fica”. Com Dürer a gente se casa. Pintor, escultor, gravador, tratadista, matemático. Um renascentista completo. Seu “Auto-retrato, aos 26 anos” é extraordinário. Matemático, melancólico, sofisticado. A matemática a serviço do sentimento. Falar dele agora seria estender-me. Deixar de mencionar, um pecado.
“Auto-retrato, aos 26 anos” Albrecht Dürer. 
Natienda Prado”, loja do museu, comprei um pequeno poster desta maravilha. Bosch eu já tinha, desde minha “fase Bosch”. Já houve a “fase van Gogh” a “fase Chagall”, a fase “El Greco” a fase “Egon Schiele”. Sofro de fases, dá para ver. Muito amorosamente, eu sentia que estava entrando na “fase van der Weyden”.
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A noite já baixara. Famílias passeando no centro de Madri. Uma música bossanovista lá  longe. Entramos numa espécie de delicatessen, onde se podia sentar e comer. Pão integral, jamon (presunto), queijos, um bom vinho tinto espanhol. Amanhã cedinho, rumo a Barcelona. Foi uma noite de sonhos. Sem som nem sentido, um sacro horror em pântanos, bolhas, paquidermes e grutas antropomórficas.
Angela Weingärtner Becker
Museo Nacional del  Prado (parte II)- Os  magníficos flamengos
O sol e a música ficaram lá fora. Em mim, um levíssimo sentimento de familiaridade. Estes profissionais de parques e esquinas sabem escolher repertório. As suas músicas parecem nos falar de parentes distantes.


Dentro do Prado, cada um de nós, retomou seu rumo e ritmo. Ritmo que nunca, mas nunca, é igual. Demorar-se diante de uma obra de arte, fruí-la, é experiência pessoal.

Entrei pela “Puerta de los Jerônimos”, pinturas de 1100 a 1600. Iria ver os alemães, os flamengos, italianos e novamente Goya, do qual já falei anteriormente. Van der Weyden, pintor flamengo, foi o primeiro. Por volta de 1450 estava em Roma, viagem obrigatória para todo o artista da época Lá iam beber do equilíbrio, harmonia e proporção, da cultura trazida da Grécia.


Quando me deparei com a obra mestra de Van der Weyden, “A Descida da Cruz”, ocupando uma parede inteira, respirei fundo. Tão fundo como se eu fosse uma montanha respirando. Ao meu lado um suspiro vindo de outro visitante. Depois, outra interjeição, em língua desconhecida. E aconteceu: fui parar dentro da obra. Nada mais vi, nada mais escutei ao redor. A minha retina media tudo: cores, formas, espaço, equilíbrio da composição. Eu escaneava a obra. Perfeita!

“A Descida da Cruz”. Rogier van der Weyden, 1435
“A Descida da Cruz”. Rogier van der Weyden, 1435 (detalhe)

O tema era a dor estampada nos rostos. Havia graus de intensidade de dor. Cristo, em diagonal, sendo retirado da cruz. As formas conversavam entre si. Os braços de Cristo têm a mesma posição dos braços de sua mãe desfalecida. A cor dos seus rostos é igual: cinzenta. Um historiador de arte diz “O filho morto fisicamente, a mãe morta emocionalmente.” Santa Ana, em cima, à esquerda, esconde o rosto com a mão. A cabeça coberta com um pano branco drapejado. As figuras mudas, mergulhadas no silêncio da dor. “A alegria não ri! A tristeza não chora!” diria William Blake, pintor e poeta inglês. Dores contidas. Dramaticidade contida. Desta vez, ao invés de Velázquez, eu elegia van der Weyden. Imaginei um holofote sobre este quadro de 2,20m X 2,60m, e o resto da sala escura. Não teria a profundidade 3D de “Las Meninas” que é cheio de planos. Mas ganharia em comoção e humanidade. Ah, esses flamengos entendem de dor. Que coisa existe naquela região que vira o ser humano para dentro?


Entrei na sala 58 A, onde estava Hans Memling. Alemão de Colônia foi para a região de Flandres ser aluno de van der Weyden. Desde a exposição de duzentos anos de sua morte, em Bruxelas, ele ganhou em importância. Pode-se perceber a diferença que fez na pintura, suavizando as linhas, aproximando-se mais do gosto do público da época.


“A Virgem com o Menino entre dois Anjos”. Hans Memling, 1480

O nosso Museu do MASP possui uma bela obra sua. O quadro é parte de um díptico (quadro em 2 partes dialogando um com outro, dobrado por meio de dobradiças). Este díptico fora perdido. “No mercado de Arte era costume desmembrar suas partes, e uma delas vem para o MASP” diz o professor Renato Brolezzi. E continua explicando "nosso quadro": “a gestualidade das mãos forma um leque de palmas que protege a virgem e dá a dimensão da dor do momento. Existem lágrimas. Mas tudo tem um tom de sobriedade, diferente do barroco onde há expressões faciais exageradas e gestos expansivos. Há beleza na dor, característica da pintura flamenga. O detalhismo, o comedimento, a dor silenciosa. Em nenhum pintor flamengo do séc. XV vamos encontrar atitudes teatrais”.
Considerados primitivos, os flamengos, longe disso, têm grande maestria na composição, nas cores. No gênero retrato, eles darão um show no século XV.



Quanta diferença entre os pintores sacros! Antes me pareciam todos iguais. A arte religiosa era monótona. Agora podia ver as nuances.

“A Virgem em Lamentação, São João e as Pias Mulheres da Galiléia”
Hans Memling, 1485
                                                           Angela Weingärtner Becker
O Museo Nacional Del Prado, é ALGO!!!
O dia amanheceu cinzento, com uma chuvinha de má vontade. Para mim, não ia fazer diferença já que pretendia passar o dia dentro do Prado.
Soaram os sinos das 9 horas. Ah sinos, sinos. Eles iriam me acompanhar pela viagem afora. Seu badalar se expande na manhã ainda silenciosa. O centro de Madri apenas começava a se espreguiçar. Era domingo. Pude caminhar olhando para cima, para os lados, para os prédios bem conservados. Impressionantes monumentos. A Fonte de Cibeles. Atrás da praça do mesmo nome, o majestoso “Edifício das Comunicações”. E muitos, mas muitos metros quadrados de área verde.
Tão bom ver o verde. Chegar ao Prado, é caminhar sob velhas árvores. Uma alegria vegetal, diria Lorca. Ele que facilmente se transmutava em plantas e estrelas.
De manhãzinha, cheiro de terra molhada, ar lavado. Gostaria de ficar ali vendo as pessoas chegarem. Mas também queria entrar logo e começar minha grande jornada.

O Prado e sua imponência neoclássica! Lembra a Grécia e seus templos, no pórtico de entrada, as colunas dóricas, sólidas, de caráter masculino. A palavra templo é ainda mais apropriada quando já sabemos o que vamos encontrar lá dentro. O acervo do Prado é uma síntese da história da Espanha, de monarcas apaixonados por Arte. Carlos III começa a construir o prédio, Fernando VII inicia a coleção em 1819, com quadros de sua propriedade. Mais tarde, o museu recebe obras religiosas do Museo Trinidad, como pagamento de dívidas ao Estado. Em 1971 incorpora o Museu de Arte Moderna e soma uma importante coleção do século XIX. Com doações e aquisições, acaba sendo o que é:  importante referência para os artistas que virão.


Era a segunda vez que o visitava. A primeira, foi em 1998. Na minha cabeça ainda brilhava um quadro: “As meninas”, de Velázquez. Na ocasião, a obra estava sozinha em uma sala cuja iluminação incidia direto sobre ela. O resto da sala, no escuro. E todo mundo babava à vontade, inclusive eu. Parecia 3D. Magnífico! Até hoje sonho com um hiper-mega-museu onde cada quadro tem o direito àquela iluminação e a uma sala exclusiva. Não há como não embasbacar. Picasso copiou este quadro e, exaustivamente, fez releituras (ver Picasso e Las Meninas). O cão que aparece em primeiro plano, é transformado em seu próprio “linguicinha” chamado Lump. Picasso amava este quadro. E entra nele, mistura sua vida pessoal com a obra de Velázquez.


“Las Meninas”. Diego Velázquez, 1656


Na entrada do museu, recebe-se o “Plano”, um guia bonito, esclarecendo “quem-está-onde”. As entradas, os pisos, sanitários, lojas. É objetivo, tanto quanto pode ser. Eu,  que me atrapalho com mapas e caminhos, compreendi depois que a coleção é mesmo complexa.Tenta compartimentalizar países e, ao mesmo tempo, dispô-los em ordem cronológica. Resulta que há salas, uma ao lado da outra, com pintores de países diferentes, mantendo o tempo cronológico. A ênfase, é claro, recai sobre os espanhóis. Principalmente nos geniais Velázquez, Goya, Murillo, Ribera e El Greco. Este que nasceu grego e se fez espanhol. Também eu, aqui seguirei esta ênfase.

Entro pela “
Puerta de Goya” que dá para a primeira planta. Quase 40 salas com os maiores nomes da pintura universal. Tiziano, Caravaggio, El Greco, Mengs, Murillo, Poussin. E o que é melhor: com quadros de excelência de cada pintor. Lá estava Velázquez e seu “Las Meninas”. Desta vez junto com outros, seus também. Mas onde estava o impacto que eu prometera à colega que me acompanhava? Parecia que eu tinha tomado um antitérmico e uma febre de 40 graus baixara para 37. Que coisa. Como é importante um holofote, um pedestal. Mas, longe de mim desmerecer o maior tesouro do Prado. Sua menina dos olhos.

Havia outras obras, todas excepcionais. De Rubens, “
As três Graças”. Deusas da dança e movimento, da mitologia grega. Cabia a elas enfeitarem Afrodite quando esta saía para seduzir. Olhando o quadro de Rubens, via o ideal de beleza do século XVII. Longe da anorexia moderna, eram corpos “normais”. Assim são os corpos das mulheres, pensei. Sem academia, sem photoshop.


“As Três Graças”. Rubens, 1577-1640


Deste primeiro piso, sete salas são dedicadas a Goya, quando ainda era pintor oficial da corte. Família real, nobres cortesãos são retratados pelo pintor. Ele empregará uma paleta de cores muito luminosas. Segue um estilo neoclássico, inspirado no pintor alemão Mengs. Mas se bem olhado, vemos a crítica e coragem de mostrar a família de Carlos IV com ironia, sem nenhuma elegância. “O rei é fraco e estúpido; a rainha, irritável e rixenta” analisa Wendy Beckett, historiadora de arte. Goya tinha o dom de captar o “río abajo rio”, o leito do rio, que está sob as águas da aparência. Ele transcende a representação. Ele denuncia.


“A família de Carlos IV”. Goya,1800

Os quadros “Maja Desnuda” e “Maja Vestida” também de inspiração classicista, são supostamente da mesma modelo, a Duquesa de Alba. Rumores não comprovados dizem que Goya tinha um romance com ela. Penso que este par de quadros deveria estar  disposto lado a lado. Para melhor comparar. Mas não. Apenas ocupavam a mesma sala. A modelo olha com languidez para aquele que a pinta eroticamente.


"Maja Desnuda”. Goya, 1797–1800 



"Maja Vestida". Goya


Goya viveu um período da história da Espanha muito agitado e de mudanças revolucionárias. Em sua fase conhecida como “fase negra”, ele já estava surdo, doente, e profundamente decepcionado com seu país, com seus governantes.


Lá estava “O Colosso” que mostra o pânico de milhares de pessoas fugindo na sangrenta guerra contra os franceses. Parecem insetos sob um gigante que domina os céus. Ele emerge, como num pesadelo, de nosso inconsciente. Também o  “Três de maio de 1808”, obra que mostra no ato, um fuzilamento. Ao lado daquele que está sendo fuzilado, uma fila de espanhóis espera a sua vez de morrer. O exército de Napoleão está representado sem rosto, enquanto o povo encara o pavor da morte, ou sangra no chão. As suas imagens dramáticas e escuras serão uma clara referência para os pintores expressionistas e surrealistas.


"Três de Maio de 1808" Goya. http://wikipédia.com.br

Há um filme muito bom, de Carlos Saura, “Goya” (1999). Não me refiro ao recente “As sombras de Goya”. Este, deixa a desejar, do ponto de vista da história do pintor. O filme de Saura faz uma narrativa que evolui seguindo o desenvolvimento da pintura do artista. Um começo luminoso, claro, seguido de fortes contrastes entre claro e escuro, até que predomina o negro total, em sua última fase. Recomendo, recomendo veementemente.

Eram quase três da tarde quando o estômago deu sinal. E era a hora combinada para encontrar minhas companhias no “Café Prado” dentro do museu. Um almoço silencioso, carregado de emoções. A que mundos cada um era levado pela arte que vimos?


Carimbando o bilhete de entrada, pode-se sair e voltar. Era nossa intenção para logo mais. Lá fora, um solzinho amigável. Um homem vestido a rigor, tocava “
Dicen que La distancia es el olvido, pero yo no concibo esa razón....La Barca, que como Garota de Ipanema e My way, ouve-se por toda a parte.

Angela Weingärtner Becker